Os títulos conquistados são galões que se apresentam em campo e servem, ao mesmo tempo, como exemplo e objetivo para os colegas mais jovens e como elemento intimidatório para os adversários conhecedores da história. Além de ser pelo rendimento que ainda garantem no relvado, é também por isso que os clubes de maior sucesso olham para os seus símbolos com vontade de que eles durem para sempre. No caso dos clubes portugueses, fazem os possíveis para os recuperar, porque a nossa realidade é essa – os gigantes, cedo ou tarde, acabam sempre por sair. No caso dos grandes clubes dos grandes mercados, evitam que eles mudem de camisola e preservam-nos durante toda a carreira. É isso que torna a situação de Sérgio Ramos especial: aos 34 anos, cinco vezes campeão espanhol, quatro vezes vencedor da Liga dos Campeões, outras tantas do Mundial de clubes e vencedor de um Mundial e de dois Europeus com a seleção, ganha 14 milhões de euros por época no Real Madrid, mas está no meio de uma conturbada negociação para renovar contrato, na qual vale tudo.
Nem a fama de língua mais afiada que os pitons ou de personalidade mais dura que cada uma das suas entradas em carrinho tem valido a Ramos, que no domingo, na seleção, no dia em que se tornou o europeu mais internacional de sempre – 177 jogos pela “Roja” – falhou dois penaltis contra a Suíça, deixando adivinhar alguma instabilidade psicológica. Ele, cujo nome é sinónimo de implacável. Ele, que até fez nascer a expressão “Minuto Ramos”, pela propensão para marcar golos decisivos nos descontos dos grandes jogos. Ele, que em várias ocasiões enfrentou já o presidente Florentino Pérez, a última das quais quando, no Ano 1 da era Pós-Cristiano Ronaldo, aquele entrou nos balneários para recriminar o plantel após a eliminação da Champions, pelo Ajax. Sérgio Ramos não leva desaforo para casa e, logo ali, apontou ao presidente vários erros da sua gestão, a começar pelo modo como deixara enfraquecer o grupo após a saída do português. “Olha que eu afasto-te”, ter-lhe-á dito Florentino, à frente dos colegas. “É-me igual! Pagas o mesmo”, conta-se que lhe respondeu Ramos, do alto da braçadeira de capitão. E é este “pagas o mesmo” que acaba por definir a relação dos símbolos vivos com os grandes clubes dos grandes mercados. Porque lá, ao contrário do que acontece por cá, eles não vão para fora ganhar muito – e isso faz com que não encarem o clube como a casa à qual se regressa depois de viver aventuras várias pelo Mundo.
Há uns cinco anos, quando renovou pela última vez, Ramos apresentou-se no escritório de Florentino com uma oferta do Manchester United de Louis van Gaal. Eram 11 milhões limpos por época. O Real Madrid bancou e deu-lhe 14. Casillas tinha acabado de sair para o FC Porto e era preciso manter uma referência no balneário. Agora, que o Real Madrid só quer dar-lhe um ano de contrato, nascem rumores de uma proposta louca do Paris Saint Germain. Em Madrid – como em Paris, aparentemente – não acreditam, acham que é bluff, que o PSG já anda às voltas com o fair-play financeiro e a última coisa em que quererá meter-se é num contrato milionário com Ramos. Mas no fundo nada disso importa. Do que vos falo aqui é da relação de um símbolo como Ramos com o seu clube. E da forma como o jogador e o clube a vivem, muito mais profissional e diametralmente oposta à relação mais sentimental que marcou o regresso de Vítor Baía ou Pepe ao FC Porto e de Rui Costa ou Nuno Gomes ao Benfica – no Sporting são raros estes casos, porque no clube conseguem sempre estragar a relação com os símbolos antes deles saírem, como aconteceu com Figo ou Moutinho, ou até depois de eles voltarem, como sucedeu recentemente com Nani. Nem de propósito, fala-se hoje da eventualidade de Hulk voltar ao Dragão, com redução salarial. Sim, Hulk já tem 34 anos e estará muito longe do auge, como se perceberá pelo facto de nos últimos tempos ser mais notícia pela sua vida amorosa do que pelo rendimento em campo. Mas Sérgio Ramos também não é uma criança e já devia estar na fase da carreira em que passou a ser parte da mobília.
Há muita coisa que os clubes portugueses gerem mal na relação com os jogadores que vão fabricando. Demoram, por exemplo, a dar-lhe estatuto – e salário – semelhante às promessas que os seus departamentos de scouting vão descobrindo por aí. E isso até pode inquinar as relações entre ambos. Apesar disso, há uma coisa que o contexto lhes permite e que alguns conseguem aproveitar: os próprios jogadores sabem que a relação com os nossos grandes clubes não é marcada pelo dinheiro, porque o dinheiro a sério vão ganhá-lo lá fora, quando se transferem. Se forem inteligentes e souberem esperar pelo momento certo para sair, farão grandes carreiras e voltarão convertidos em estandartes. Sérgio Ramos nunca teve isso, porque ganhou o dinheiro a sério num clube ao qual chegou com 19 anos, depois de ano e meio a revelar-se em Sevilha. Pepe, que é amigo dele, podia fazer o favor de lho explicar.