Era uma vez um monarca árabe, uma candidata a princesa e um clube de futebol de Inglaterra. Não são As Mil e Uma Noites, mas bem poderiam ser. Desde que o Newcastle United foi posto à venda, em Novembro de 2017, já lá vão cerca de 900 dias e é bem possível que a negociação seja concretizada no bater da cabalística marca de 1001 noites, quando o consórcio liderado pelo herdeiro do trono saudita Mohammed bin Salman desembolsar uma quantia de fazer inveja a Ali Baba: 310 milhões de libras, cerca de 350 milhões de euros.
A fortuna não está em nenhuma caverna vigiada por 40 ladrões (pelo menos, não que se saiba), mas nos cofres da Public Investment Fund of Saudi Arabia (PIF), administrado pelo futuro rei árabe, e da PCP Capital, da investidora inglesa Amanda Staveley, uma bela e inteligente mulher que poderia ter entrado para a família real britânica mas que recusou o pedido de casamento do príncipe Andrew em 2003. Afinal, my dear, por que razão quereria ser uma princesa quando pode ser uma rainha… do futebol?
Aos 46 anos, Staveley é uma espécie de Xerazade dos negócios da bola, hábil em enfeitiçar bilionários árabes com o seu par de olhos verdes e suas fábulas sobre barganhas na ilha. Em 2008, intermediou a compra do Manchester City por Mansur bin Zeyed al-Nahyan, sheikh de Abu Dhabi, por 274 milhões de euros. Também esteve por trás da tentativa frustrada de aquisição do Liverpool FC por Mohammed bin Rashid al Maktoum, sheikh dos Emirados Árabes Unidos.


Era natural, portanto, que em 2017 o estatuto de open to business do Newcastle UFC fizesse Amanda reabrir a agenda na letra “S” e telefonar para o próximo sheikh da lista. Calhou a vez a Khaled bin Zayed al-Nahyan, primo de Mansur, aquele mesmo dos Citizens.
O negócio, porém, não prosperou, em parte por culpa de Mike Ashley, o excêntrico dono do Newcastle United, proprietário rede de material desportivo Sports Direct, um império que construiu com 10 mil euros emprestados pelos pais e que hoje conta com centenas de lojas espalhadas pelo mundo. O que se não lhe confere um título pomposo de uma casa real, garantiu-lhe uma fortuna digna de um emir.
A alcunha de “excêntrico” é um eufemismo aos que têm 2,5 mil milhões de euros na conta. Se Mike Ashley tivesse o meu ou o seu saldo bancário, poderia ser conhecido como um simples bêbado e falastrão que torra o salário no pub local. Entre as suas façanhas alcoólicas já como dono do Newcastle United está ser apanhado por câmaras a entornar um pint (0,56 litros) em menos de 15 segundos nas bancadas do Emirates Stadium, o que chamou a atenção da polícia não pelo feito, mas pelo consumo de álcool ser proibido no estádio do Arsenal.
Noutra ocasião, em 2013, foi levado ao tribunal por supostamente prometer a um advogado cerca de 17 milhões de euros para que o ajudasse a dobrar a receita do clube. A oferta teria ocorrido no pub londrino The Horse and Groom (com executivos do antigo banco português Espírito Santo como testemunhas). Ashley foi absolvido em 2017, após alegar que não se lembrava da oferta nem de nada mais do que aconteceu na fatídica noite graças à branca decorrente da bebedeira. Pelos antecedentes do acusado, o juiz achou que a história fazia todo o sentido.
Oferecer negócios em nome Newcastle United em obscuras reuniões regadas a álcool poderia ser o motivo da baixa popularidade entre os adeptos, mas o que pesou mesmo para relação entre as partes estar perto do fim foram as épocas pífias, com direito a duas despromoções, nos 13 anos de Ashley à frente do clube. Em 2017, o magnata decidiu pela segunda vez (fracassou na primeira, em 2009) passar à frente o investimento pelo qual pagou 150 milhões de euros.


Desde então, houve alguns interessados em adquirir o clube, mas nenhum tão interessado como Amanda Staveley. A tentativa frustrada de 2018 provocou atritos entre a Xerazade e o Sultão de St James’ Park, que chegou a dizer que negociar com a finance influencer era uma “perda de tempo”. Os biliões do príncipe árabe, porém, parecem capazes de limar as arestas, principalmente após a lista de 2019 dos riscos do The Sunday Times acusar o decréscimo de 530 milhões de euros no património de Ashley em apenas um ano.
Desde o início da época, os olhos verdes de Amanda voltaram a rivalizar com o relvado do St James’ Park e, embora Mike Ashley não seja propriamente a chávena de chá dela, ambos foram vistos em Dezembro no mesmo restaurante indiano, em Hampstead. Os tabloides desta semana garantem que um depósito de cerca de 20 milhões de euros já foi feito e que logo o administrador do fundo saudita, Yasir al-Ramanyyan, será também o novo chairman do clube, enquanto o antigo dono terá mais tempo para se dedicar ao pub.
Enquanto os adeptos sonham com um futuro de Manchester City para o Newcastle United, há quem veja com ressalvas o negócio. A organização Amnistia Internacional emitiu uma nota advertindo para a tentativa de Mohammed bin Salman ser mais um a usar o futebol como sportwashing, valendo-se do glamour da modalidade para encobrir os atentados do regime saudita contra os direitos humanos. Nunca é demais lembrar que o príncipe é o principal suspeito do assassinato do jornalista e crítico do seu governo, Jamal Khashoggi, que em 2018 teve o corpo desmembrado em pleno consulado do país na Turquia.


Entre críticas e euforia, não será o primeiro nem o único caso na Inglaterra. E, a depender de Amanda Staveley, também não será o último. Após uma segunda tentativa frustrada de intermediar a compra do Liverpool FC pelos seus amigos sheiks, no ano passado, é provável que a negociação mais do que encaminhada com o Newcastle United lhe reanime os ânimos para uma nova investida. Afinal, a mulher que trocou a coroa por uma bola parece saber como ninguém pronunciar o “abre-te, Sésamo” que destrava aos clubes ingleses as portas aos tesouros de As Mil e Uma noites.
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