Os primeiros 25 minutos do Portugal-Espanha de ontem chegaram para deixar os cabelos em pé a muitos observadores da seleção nacional, incluindo o selecionador, mas o resto do jogo deu a Fernando Santos a escapatória para não ter de enfrentar publicamente aquele que ele já terá entendido ser o seu maior propósito nos tempos que aí vêm. Sim, é ganhar. No dia em que – mesmo não tendo estado no banco num deles, por castigo – igualou os 74 jogos de Luiz Felipe Scolari à frente da equipa, Santos até falou em ganhar um campeonato do Mundo. Mas para lá chegar vai ter de definir muito bem a que joga esta seleção. É isso que lhe falta para, mais do que memórias, deixar legado.
Olha-se para a Espanha e percebe-se ao que joga. Gente com qualidade de saída atrás leva a uma construção paciente desde o início. O extraordinário domínio dos fundamentos do passe, da receção e da desmarcação permite a criação permanente de linhas de passe, ajudando a equipa a entrar em zona de criação com promessa de desequilíbrio. A facilidade dos homens da frente para receberem entre linhas ou procurarem o espaço na profundidade consuma os desequilíbrios de que falava antes. E a competência na redução dos espaços sem bola e na pressão leva a equipa a apertar o adversário desde cedo, permitindo-lhe ter gente em zonas atacantes em momentos de recuperação. Não é uma Espanha do tiki-taka, porque tem muitas outras soluções, e do meu ponto de vista é mais perigosa e variada assim. O que aconteceu nos primeiros 25 minutos de ontem foi um recital, provavelmente não consumado em golos porque, apesar da qualidade, a Espanha não tinha em campo muitas das primeiras figuras: Luis Enrique repetiu apenas três titulares do jogo com a Ucrânia (Reguillon, Olmo e Gerard) e dois da partida com a Alemanha (Busquets e Rodrigo).
É também possível olhar para o jogo na que parece outra perspetiva, mas que no fundo acaba por conduzir à mesma conclusão. No final, Santos justificou a diferença enorme entre as duas equipas nos primeiros 25 minutos com o facto de Portugal estar desorganizado. Mas isso mais não é do que reconhecer o sobrepeso da dimensão estratégica no jogo nacional, porque essa desorganização tem a ver acima de tudo com um fator: o que vai fazer Cristiano Ronaldo? Se a dimensão estratégica permitir um jogo mais atacante, Ronaldo aparece sobre a esquerda, mas surge muito frequentemente no meio, a juntar-se ao avançado mais central. Foi assim que Portugal surgiu ontem, causando evidentes desequilíbrios em momentos de transição e de organização defensivas. Santos corrigiu isso a partir do meio da primeira parte: encostando Renato Sanches à esquerda em momentos defensivos, passou a poder opor-se muito melhor à saída de bola a quatro que a Espanha fazia e isso foi o suficiente para a equipa sair do buraco em que estava e subir o bloco uns bons 15 metros. Na segunda parte, com a troca de André Silva por Bernardo Silva, surgiu o Portugal mais próprio dos jogos em que o adversário tem a maioria da posse, com Ronaldo a ponta-de-lança num 4x1x4x1 que prejudica a dimensão ofensiva do jogo do capitão mas torna o coletivo muito mais equilibrado quanto às tarefas defensivas.
No fundo, a maior diferença no jogo de ontem é que a Espanha tem uma ideia e Portugal tem um super-jogador. E isto não é “culpa” de ninguém. Quando se tem um craque como Ronaldo – que na segunda parte de ontem ainda meteu um balázio na barra de Kepa e foi descobrir Renato Sanches para outro – idiota seria não aproveitar ou esperar que isso não afetasse a ideia coletiva de jogo. É por isso que não podemos levar a sério a tese segundo a qual esta seleção joga melhor sem Ronaldo. O que os defensores desta ideia querem dizer é que, sem o capitão, sem o condicionamento que a sua qualidade lhe impõe, esta equipa tem uma ideia mais coletiva de jogo, mas a verdade é que com ele está sempre mais próxima do objetivo que Fernando Santos voltou a definir no final do jogo de ontem: ganhar. É por isso que, no domingo, contra a França, acredito que Santos poderá apostar numa equipa em que Ronaldo seja ponta-de-lança – e com William e Danilo a meio-campo. Se o grande desafio dos tempos mais próximos é tornar esta equipa estrategicamente independente do fator-Ronaldo sem perder aquilo que de bom ele traz ao coletivo, essa pode ser a melhor forma de o conseguir de modo eficaz.
Porque se Santos quer ganhar, ninguém mais do que o capitão corporiza esse espírito em campo. Basta ver a forma como ontem protestou com o árbitro por não ter dado um segundo de compensação na primeira parte, quando Portugal tinha a bola. Num jogo particular.
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