Poucas zonas da Europa têm tido, nos últimos meses, uma atividade sísmica tão notada quanto o centro de Itália e a ilha da Sardenha em particular. Há explicação para o fenómeno e decorre da colisão entre as placas tectónicas de África e Eurásia. Futebolisticamente falando, em Cagliari, há um sismo com epicentro no Estoril e que já fez vítimas em Roma, Bergamo, Florença, Bolonha, Génova ou Nápoles. É uma equipa de renegados que encontrou o seu El Dorado em pleno Mar Mediterrâneo.
Orientado por Rolando Maran, o Cagliari Calcio é uma das grandes histórias do futebol de 2019/20. Cumpridas catorze jornadas da liga italiana, a equipa da Sardenha ocupa a quarta posição da competição após mais uma épica recuperação (de 1-3 para 4-3, frente à Sampdoria), algo que já começa a ser imagem de marca dos jogadores deste experiente técnico italiano. Posição de Liga dos Campeões. Contra todas as expetativas. Afinal, na temporada passada, o Cagliari não foi além da 15ª posição e somente três pontos à frente do primeiro despromovido, o Empoli.
Em 2019/20, o Cagliari já leva oito vitórias estando a apenas duas do total conseguido em toda a época passada. Um verdadeiro terramoto no status quo do futebol italiano, com epicentro no Estoril. Estoril terra e Estoril-Praia, o clube. Afinal, foi ao emblema da linha de Cascais que o Cagliari “roubou”, em setembro de 2014, João Pedro Galvão, por cerca de 1,3 milhões de euros, e o brasileiro converteu-se na grande figura do início de época memorável da equipa. Numa verdadeira história de redenção, o ex-estorilista, que também passou, em Portugal, pelo Vitória SC, leva nove golos em 14 jogos.
Não foi há muitos meses que João Pedro Galvão atravessou o período mais negro da sua carreira. Numa verdadeira montanha russa de emoções, vive agora um dos períodos mais ricos da carreira, meses depois de ter descido ao inferno, depois de ser apanhado nas malhas do doping. Em Março de 2018, foi suspenso por seis meses, depois de acusar positivo num controlo antidoping realizado após um empate a zero perante o US Sassuolo. Galvão acusou hidroclorotiazida, uma substância proibida, e só voltou a jogar na temporada seguinte e já com a mesma em andamento. O atacante brasileiro ainda foi a tempo de rubricar sete golos e três assistências na liga italiana de 2018/19, mas a redenção chegou, definitivamente, já em 2019.
Com nove golos em 14 jogos, João Pedro Galvão já tem mais golos neste início de época do que em toda a temporada passada. Na verdade, o homem que se notabilizou no Estoril Praia de Marco Silva que chocou o futebol português em 2013/14 – campanha em que apontou nove golos em 42 jogos -, vai a caminho da melhor época da carreira, estando neste momento a apenas três golos do total estabelecido em 2015/16, a primeira completa em Cagliari e a mais prolífica da sua carreira.
João Pedro Galvão tem sido absolutamente determinante na campanha surpreendente do Cagliari esta época. Com os dois golos apontados no épico frente à Sampdoria da passada segunda-feira, jogo vencido pelos sardos já bem dentro do período de compensação, com o golo de Alberto Cerri, a confirmar o 4-3 final, já no sexto minuto de tempo extra, João Pedro Galvão passou a ter influência direta em oito pontos conquistados pelo clube até agora. Sem os seus golos nos encontros frente à AS Roma – no Olímpico -, Bolonha FC, US Lecce e Sampdoria, nenhuma linha desta história podia ser escrita. São números que transformam uma história sem interesse num possível conto de fadas.
Nesta história não há lugar a estatísticas. Esqueçamos os números. Nenhuns conseguem justificar o facto de, 14 jogos volvidos, o Cagliari estar entre os quatro primeiros da Serie A. Senão vejamos: segundo os números, o Cagliari não iria além dos 16 golos marcados em função do total e qualidade das oportunidades claras de golo que construiu, quando a equipa de Maran leva por esta altura 29 e só Atalanta, Lazio e Inter marcaram mais. Aquele que, segundo a estatística, devia ser o sexto pior ataque da prova, é na verdade o quarto melhor. Mais. Em função daquelas que são as oportunidades claras de golo permitidas ao adversário, o Cagliari devia ser por esta altura a quinta pior defesa da liga, quando na realidade até é a sétima melhor. Sofreu 17, devia ter sofrido 23, segundo os números.
O Cagliari tem 28 pontos na realidade, quando os números dizem que só 14 são justos. Mas, no futebol, o que é isso de justiça? Não é esta a democracia pela qual todos nos apaixonámos? Uma anomalia apaixonante trouxe o Cagliari a um quarto lugar que devia ser um 15º. É vender agora, antes que desvalorize, mas desfrutar enquanto dura. Uma coisa é certa: ninguém apaga o arranque espetacular do Cagliari, um dos mais entusiasmantes e inesperados entre todos aqueles que disputam as principais ligas do futebol europeu. Não queiramos racionalizar, deixemo-nos absorver.
Em 2019/20, o Cagliari é uma grande história e João Pedro Galvão não é capítulo único de redenção. Na verdade, o clube sardo reuniu um conjunto de jogadores dos quais muitos outros desistiram. Robin Olsen e Mattielo não entravam nos planos do futebol renascentista de Paulo Fonseca e Gasperini. Em Liverpool ainda ninguém percebeu como Ragnar Klavan chegou a Anfield. Luca Pellegrini era demasiado novo para a Juventus. Rog não foi o Hamsik que o Nápoles procurava. Simeone apenas estava em Florença por ser filho de quem é. Cerri é a eterna promessa que não explode. Cacciatore e Cigarini são demasiado velhos para um país que se procura rejuvenescido. Pavoletti, esse, só em Cagliari sabe marcar golos. Nandéz ou Oliva estão entre os melhores da América do Sul, mas por estranha razão nenhum outro clube convenceram. Nainggolan, acima destes todos, é um tipo demasiado problemático.
Nainggolan foi para Cagliari por amor e redescobriu o que havia perdido em Milão e Roma. Regressou ao ponto de partida por necessidade e renasceu para o futebol. E ele já tinha estado por ali. Foi no Cagliari que se deu verdadeiramente a conhecer e foi o Cagliari que o catapultou para os grandes palcos internacionais, ora ao serviço do Inter, ora da Roma, ora ainda da seleção belga, onde é o enfant terrible. Não convenceu Wilmots para o Mundial 2014, não convenceu Martínez para o Mundial 2018, e retirou-se ele próprio da possibilidade de estar presente no Euro 2020.
Depois de não ter entrado nos planos de época de Antonio Conte em Milão, foi o amor que o devolveu a Cagliari. Não necessariamente o amor ao futebol, mas o amor à mulher que conhecera, ali, anos antes. O infortúnio obrigou a que a esposa quisesse regressar a casa numa altura em que atravessa um grave problema de saúde e aquele que é muitas vezes acusado de gostar de ter os holofotes apontados a si próprio, deles abdicou. Nainggolan colocou o interesse pessoal e a carreira de lado em prol da mulher e a justiça divina futebolística abençoou-o. Está a jogar como poucas vezes jogou, o que diz muito, portanto, daquele que tem sido um dos melhores médios do futebol europeu na última década.
E, por fim, há Rolando Maran. Hoje com 56 anos, teve de esperar dez anos de carreira até chegar, em 2012, à Serie A. Fê-lo pela mão do Catania e levou o emblema siciliano às melhores temporadas da história do clube até ser despedido, em 2013, após uma derrota às mãos do… Cagliari. Regressou ao Catania no ano seguinte, mas nada mais foi igual. Passou quatro anos ao comando do Chievo, mas foi preciso chegar aos 56 anos para ser notado. Não necessariamente como estratega, como já se viu, mas principalmente como motivador e líder de homens. Líder de renegados, construído uma equipa na verdadeira aceção da palavra e cujo todo é maior, muito maior, do que a soma das partes. Aqueles que não serviram para outros, fazem hoje do Cagliari a história da temporada em Itália. Um sismo com epicentro no Estoril. Uma equipa que não vive estatísticas, mas sim de sentimentos.
Fundamental para o crescimento desportivo do Cagliari em 2019/20 acabou por ser a… venda de Nicolò Barella ao Inter Milão. Muitos foram os sobrolhos que se levantaram após a conclusão do negócio, uma vez que o Cagliari acabava de perder o principal destaque da temporada 2018/19 e, por isso, iria entrar na temporada atual sem a sua grande estrela. A verdade é que Barella é o perfeito exemplo de como a venda de um só jogador pode desbloquear um problema global e subir mesmo a qualidade média de todo um plantel.




Para o Cagliari, só a venda de Barella permitiu que o clube tivesse a liquidez necessária para fazer chegar à Arena Sardenha, este verão, nomes como Nández, Rog, Cerri, Oliva, Simeone, Olsen, Pellegrini e, claro, Nainggolan, que vieram dar uma dimensão totalmente diferente a um plantel que era dos piores da competição. Do nada, o Cagliari conseguiu ter a liquidez necessária para formar um dos melhores meios-campo do futebol italiano e, para tal, foi preciso vender o elemento chave da equipa e desse mesmo setor na temporada passada.
É precisamente no meio campo que reside então a força deste Cagliari. Assente num escalonamento em losango, Cigarini surge como regista, enquanto Rog e Nández são as forças motrizes no corredor central. Já Nainggolan, a grande invenção de Maran, surge nas costas dos avançados João Pedro e Simeone, muitas vezes explorando o espaço entre linhas e aproveitando a sua impressionante meia distância, uma das melhores do futebol mundial. Tanto, que o internacional belga de ascendência indonésia já leva quatro golos e quatro assistências na liga italiana esta temporada.
Com apenas um título italiano na sua história, não é previsível que o Cagliari termine a temporada a lutar pelo mesmo ou, sequer, até em zona europeia, qual Atalanta de 2018/19. Ainda assim, já ninguém tira a Rolando Maran o título de melhor início de temporada do clube desde que Gigi Riva alavancou os sardos ao título em 1970. “Europa não é uma palavra proibida, mas não podemos pensar a tão longo prazo. Temos de pensar jogo a jogo e manter a inquietação dentro de nós para nos obrigar a crescer, trabalhar e melhorar dia após dia”, advertiu Maran. Mesmo que não dure para sempre, a série vai já em 12 jogos sem qualquer derrota. De excendentários adversários, afinal, também se faz uma grande equipa, uma equipa que vai acumulando verdadeiros épicos.