Mehdi Taremi não precisou de muito tempo para deixar a sua marca no futebol português. Após ter saltado do banco frente ao FC Famalicão, na segunda jornada da Liga, a estreia a titular, na ronda seguinte, em Vila do Conde, frente ao CD Aves, proporcionou uma exibição de sonho ao atacante iraniano, coroada com três golos nos 5-1 do Rio Ave. Do outro lado do campo estava o compatriota Mehrdad Mohammadi, autor de dois golos nas duas primeiras jornadas da Liga, mas nessa noite em branco. Depois do trabalho de Carlos Queiroz ao comando da seleção do Irão, a ligação futebolística entre os dois países ganhou assim uma dimensão especial, a ponto de haver já quem questione se Taremi e Mohammadi são assim uma espécie de Messi e Ronaldo iranianos ou se há por lá mais craques como eles. E haver, até há. Podem é não estar ao alcance de todas as carteiras.
O mercado iraniano não é habitualmente explorado pelas equipas portuguesas, mas tanto Rio Ave como CD Aves parecem ter acertado em cheio com as contratações de Mehdi Taremi e Mehrdad Mohammadi. Se muitos consideraram as contratações dos iranianos como simples golpes de marketing – só Taremi tem quase dois milhões e meio de seguidores nas redes sociais, mais do que Benfica, FC Porto e Sporting, por exemplo –, a verdade é que este início de temporada conta uma história bem diferente. Para quem conhece bem o mercado, contudo, nada disto é surpreendente.
O treinador português Toni passou pelo Tractor, de Tabriz, entre 2012 e 2016 e conviveu de perto com a realidade do futebol iraniano. Para o antigo internacional português e glória do Benfica, o jogador iraniano é mesmo o jogador mais forte física, técnica e taticamente da zona do Golfo Pérsico. E recorda-nos que isso nem é de hoje, já que Ali Daei e Ali Karimi, por exemplo, tiveram o impacto no Bayern Munique, tendo sido fundamentais para os títulos conquistados pelos bávaros nas épocas em que por lá passaram. Destacando ainda a qualidade de Amir Abedzadeh, guarda redes do Marítimo, Toni que acaba por atribuir parte do sucesso atual ao trabalho realizado por Carlos Queiroz na seleção iraniana.
“Fruto do trabalho de Queiroz, o Irão é o 21º país do ranking FIFA de seleções e isso não acontece por acaso. Claro que é porque há qualidade, mas também pela organização que o Queiroz trouxe ao país. Neste momento, o Irão já ultrapassou países como o Japão, a Coreia e a Austrália, que historicamente sempre tiveram maior relevância do que o Irão”, diz-nos. “Quando o Irão jogou contra Portugal viu-se a qualidade do jogador iraniano, mesmo que alguns adeptos tivessem continuado reticentes”.
A organização, ou falta dela, foi um dos problemas com que Toni se deparou quando chegou ao futebol iraniano. “Referenciei sempre essa questão. Debati imenso essa questão com o clube pois havia muita coisa que era importante melhorar. O Queiroz depois veio ajudar muito à organização porque nas viagens da seleção havia sempre problemas com questões burocráticas, passaportes, autorizações, etc”.
Para o treinador português não faltam no país jogadores de grande qualidade técnica mas, mais do que isso, Toni destaca a capacidade de trabalho e o profissionalismo dos jogadores iranianos. “Em termos de aptidão para o futebol, foi visível que ela existia. Do ponto de vista do trabalho, da capacidade de trabalho, eram jogadores muito disciplinados. Recebemos sempre uma grande recetividade por parte dos jogadores em relação aos métodos de treino e exercícios táticos que lhes propúnhamos. O próprio Taremi dizia há dias que já conhecia alguns exercícios que fazia agora com Carlos Carvalhal, no Rio Ave, dos tempos da seleção que passou com Queiroz e isso ajuda à adaptação”.
As questões de organização são igualmente destacadas por Luís Viegas, um português que é analista e chefe do departamento de scouting do True Bangkok United, da I Divisão tailandesa e, por isso, alguém altamente especializado no mercado asiático e no contexto futebolístico da zona. Ou não tivesse o True Bangkok United de defrontar equipas iranianas nas competições continentais e, claro, de conhecer a fundo o mercado do Golfo Pérsico, para possível reforço da equipa. “O futebol iraniano sofre com as questões políticas e não consegue atrair estrangeiros com a qualidade que se justificaria. Porque é uma liga com muitos adeptos e tem equipas com muitos jogadores interessantes, não só do ponto de vista do talento. Os iranianos são por norma conhecedores do jogo, da parte tática, e são muito profissionais, responsáveis, têm uma excelente ética. Trabalhei aqui com o Mehrdad Pooladi, que esteve no Mundial do Brasil, e foi sem dúvida dos jogadores mais profissionais que encontrei até hoje”, diz Viegas, ex-jornalista em Portugal.
Luís Viegas traça-nos mesmo, de forma geral, as grandes características do futebol asiático: “É um continente enorme e as diferenças são naturalmente muitas. Apesar do desinvestimento nos Emirados, o futebol do Médio Oriente continua muito forte em termos de organização e de capacidade de atrair jogadores de topo, com a Arábia Saudita a destacar-se nestes últimos anos. Depois temos a China com um investimento fortíssimo tanto em jogadores como em estruturas. Japão e Coreia do Sul são também ligas muito organizadas, mas em termos de qualidade individual o Japão está neste momento à frente da Coreia devido à quase inexistência de treinadores estrangeiros na Coreia. Já no Sudeste Asiático o campeonato tailandês é o mais organizado e com melhores estruturas de qualidade, que no Vietname as condições não são tão boas, embora haja muito talento individual”.


Terra do futebolista talentoso e trabalhador
Toni partilha da mesma ideia, considerando que o jogador iraniano é um dos mais profissionais de todo o Mundo e que parte do sucesso de Taremi e Mohammadi, neste início de época, passa pela personalidade dos iranianos enquanto povo: “Há sempre questões relacionadas com a adaptação, mas o povo iraniano é um povo afável e aberto a novas experiências. Tem graça que, há uns anos, quando estava no Tractor, tinha lá um lateral esquerdo de 19 anos que pensei indicar ao Benfica para ficar à experiência em Lisboa e evoluir em Portugal. Tinha todas as qualidades para singrar. Era forte, rápido, tinha um excelente pé esquerdo, qualidade técnica e penso que tinha toda a capacidade para acabar por se impor no Benfica. Também tinha um jogador tipo Bernardo Silva que agora está no Persépolis, ou outro que chegou a passar pelo Osasuna quando lá estava o Nekounam: o Karim Ansarifard, que era um ponta de lança bom para o futebol português, para uma equipa que gosta de jogar em transições”.
Toni congratula-se com o facto das apostas em Taremi e Mohammadi estarem a ser bem-sucedidas, pois isso pode abrir a porta ao jogador iraniano em Portugal, algo que o técnico aprecia largamente. E só não se surpreende com o facto de elas estarem a acontecer em Vila do Conde e na Vila das Aves, porque considera que Rio Ave e CD Aves são orientados por dois treinadores de grande qualidade, Carlos Carvalhal e Augusto Inácio. “Estão em boas mãos”, diz-nos. Mas deixa um aviso à navegação e a quem pretender apontar baterias ao futebol do golfo pérsico: o jogador iraniano é um jogador bem pago e que pode perfeitamente estar a receber meio milhão de euros por ano no futebol asiático.
Algo que o próprio Carlos Carvalhal referiu no final do encontro entre Rio Ave e CD Aves, no qual Taremi apontou três golos. Para que o avançado iraniano ali estivesse, foi preciso uma grande dose de persuasão. “Taremi está aqui um pouco por acidente. Não era um jogador que tivéssemos a possibilidade de conseguir [por razões financeiras]. Veio pela minha capacidade de persuasão e do André Vilas-Boas [o ex-jogador, que agora é diretor-desportivo do Rio Ave] e pela grande ajuda do Carlos Queiroz e do seu tradutor. Porque o jogador teve de abdicar de muito dinheiro para vir para o Rio Ave e para se mostrar na Europa”, afirmou Carvalhal, após a goleada imposta pelo Rio Ave ao CD Aves.
As questões financeiras são, mais do que a barreira cultural e linguística, o grande entrave à aposta dos clubes portugueses no mercado do Golfo Pérsico como nos explica, também, Luís Viegas. Para o antigo jornalista de O Jogo, não faltam jogadores daquela zona capazes de emular os feitos de Taremi e Mohammadi e ter um impacto imediato no futebol português. “Há por lá muitos mais. Mas muitos deles não querem sair da zona de conforto. Basta ver o caso do Omar Abdulrahman. É um jogador com um talento absurdo, mas nunca deixou o Golfo e, segundo sei, não foi por falta de ofertas. Depende da ambição do jogador. O Taremi abdicou de um salário que estaria algures entre os 80 e os 100 mil dólares mensais para jogar em Portugal. Se o jogador tiver essa ambição de jogar na Europa, então são apostas que fazem todo o sentido. No ano passado fui ver o Hwang Ui-Jo nos Jogos Asiáticos e até conseguiríamos dar-lhe um salário superior ao que ele tem no Bordéus, mas no final pesou a vontade que ele tinha de jogar na Europa. Creio que os clubes em Portugal talvez não olhem tanto para estes mercados por receio da adaptação”, diz-nos.
Jackpots desportivos num mercado por explorar
Três jornadas volvidas na liga portuguesa e parece já ser seguro traçar um perfil bem-sucedido a Taremi e Mohammadi. Do Irão parecem mesmo ter chegado dois craques. Mas que esperar no futuro de ambos? “O Taremi é basicamente tudo o que se viu contra o CD Aves. Um avançado com mobilidade, forte em jogo combinativo e a explorar a profundidade. É inteligente, tem um primeiro toque fortíssimo e finaliza muitíssimo bem. O Mohammadi é um jogador mais vertical, forte no 1×1, em progressão com bola. É perigoso sobretudo tendo espaço, na profundidade. Na minha opinião é também muito interessante, mas o Taremi é de outro nível. E a questão é que para mim o Taremi nem sequer está entre os três melhores avançados iranianos da atualidade”, avalia Luís Viegas.
Uma avaliação que, diga-se, vai ao encontro daquilo que Carlos Carvalhal referiu no final do encontro perante o CD Aves, acreditando que Taremi, em particular, é jogador para outros voos: “Taremi é um avançado muito especial. Tem grande capacidade de finalização, tem velocidade, capacidade de desmarcação, mostra tranquilidade a jogar e é forte no jogo aéreo. É uma excelente pessoa e um jogador de seleção com muito nível. Jogou contra Portugal no Mundial e, tendo em conta do que ele abdicou para vir, só demonstra carácter e a vontade que tem, aos 27 anos, de singrar no futebol. Merece o que lhe aconteceu e o que lhe irá acontecer durante toda a época. É um jogador para outros voos”, afirmou o técnico do Rio Ave.
E quem podem ser os próximos? “Tem sido interessante ver as reações através do Twitter. No outro dia, o Hernâni Ribeiro, do GoalPoint, referia alguns jogadores asiáticos que teriam espaço no futebol português [Ehson Panjshanbe, Kim Yu-Song, Aziz Ganiev, Maung Maung Lwin, Mekan Saparow e Ali Madan]. Do Irão, e sem mencionar os que já estão na Europa, refiro o Ali Alipour e o Amir Motahari. Do Iraque, o Mohanad Ali e o Mohannad Abdul-Raheem e da Arábia Saudita o Haroune Camara. Mas são vários os jogadores da zona com qualidade para jogar em Portugal”, afiança-nos Luís Viegas. “Só a título de curiosidade há um iraniano que é neste momento jogador da seleção e que esteve uns meses em Portugal, em 2013/14, no Beira-Mar. Mas não chegou a ser inscrito. É o Hossein Kanaani. Na altura veio ele e um outro, Afshin, que foi o único a ser inscrito. O Kanaani precisava de outro papel e, entretanto, o mercado fechou”, recorda-nos ainda.
Estão identificados. Atirem-se a eles, clubes portugueses. Depois não digam que não avisámos.
Veja aqui os três golos de Taremi:
E também os dois golos de Mohamaddi na liga portuguesa:
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