Era uma fria noite de sábado nas Docas de Alcântara, mas poderia ser muito bem uma agradável tarde de sol na Gávea, em Copacabana ou no morro da Mangueira. Por algumas horas, Lisboa investiu-se dos ares do Rio de Janeiro e vestiu-se de vermelho e preto para ver o Flamengo jogar. Jogar, vencer e conquistar um título que já é histórico, numa decisão épica, disputada no ritmo do samba e regida por um maestro português.
A final da Copa Libertadores da América entre o rubro-negro carioca e os argentinos do River Plate atraiu milhares de “torcedores” ao já tradicional ponto de encontro flamenguista na capital portuguesa, ao pé da ponte de 25 de Abril, onde a “Embaixada Fla-Portugal” instala-se em dias de jogo do Flamengo. Segundo a PSP, cerca de três mil pessoas estiveram no sítio para ver o “Mengão” disputar o título continental, desde já a quarta torcida de Lisboa.

Na margem sul do Tejo, o Cristo-Rei acompanhou, altivo, o desenrolar de um duelo que exigiu fé dos adeptos do Flamengo. Muitos chegaram ao sítio horas antes para o tradicional “esquenta” da partida, a fim de preparar o espírito e anestesiar as emoções. Mais do que necessário. O golo do River Plate, ainda na primeira etapa, aumentou a expetativa, amplificou o drama. De tão densa, era possível se cortar com uma faca a tensão que pairava no ar.
Três mil almas, trinta mil copos na mesa, trezentos mil sonhos represados. Homens, mulheres, jovens, crianças, adeptos brasileiros e também portugueses, além de turistas, todos, sentados, em pé, amontoados nas cadeiras ou pendurados nos lampiões, a espremerem os olhos e forçarem a visão a fim de não perderem a um lance de um jogo que, na verdade, não foi para ser visto, nunca foi, mas sentido, disputado não no relvado do Monumental de Lima, e sim, no campo dos sonhos.

“Tem que ser sofrido!”, lamentou um torcedor, já sem unhas para roer. “Vamos virar, Mengo!”, suplicou outro, protegido dos calafrios pela bandeira rubro-negra. “Raça!”, exigiu um terceiro, berrando em direção à televisão, na expetativa do apelo fazer o caminho inverso pelo aparelho e soar aos ouvidos dos jogadores no Peru.

Ai, Jesus! Vai, Jesus! O Flamengo estava apático e os flamenguistas exigiam uma reação do mister. “Vamos ganhar. Somos melhores do que eles”, confortou-se um torcedor, num murmúrio. No Brasil, os adeptos dizem que Jesus não contava com um grupo tão bom desde os tempos dos apóstolos. Era a hora de se provar isto. A dois minutos do último apito, o Flamengo jazia em desvantagem no placar. Mais do que uma alteração tática, os flamenguistas esperavam de Jesus um milagre.
E o milagre fez-se. Gabriel pode não ser nome de apóstolo, mas é de anjo. O golo de empate de Gabigol, aos 89, como uma trombeta bíblica, deu início a uma euforia, uma histeria coletiva em Alcântara. Dois minutos depois, muitos adeptos ainda a celebrar o empate não testemunharam a espetacular reviravolta no placar, no forte remate de pé esquerdo – o lado do coração – novamente do avançado flamenguista.
Foi a senha para a festa começar. “É, cam-pe-ão!”, berravam em uníssimo, a plenos pulmões, os flamenguistas de Lisboa, para, em seguida, emendarem um “olê, olê, olê, mister, mister!”, numa reverência ao santo da casa, que anda a operar seus milagres também do outro lado do Atlântico.

Fazia frio, dez graus, mentia o termômetro, pois a temperatura nas docas era alta e a noite lisboeta nunca foi tão tropical. “Aqui é Flamengo!”, reafirmava um adepto, em transe, de olhos projetados e rútilos, antes de misturar-se com os seus para submergir no mar rubro-negro nas margens do Tejo.
Aqui era Lisboa, sim, mas também aqui era o Brasil, era o Rio de Janeiro. Ou como insistia o torcedor, aqui era o Flamengo.
Sempre, Flamengo.

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