Jorge Silas não vai poder falar aos jornalistas hoje, antes do jogo do Sporting com o Lask Linz, porque a UEFA não lhe reconhece as habilitações necessárias e, formalmente, a razão está do lado de quem o inibe. A verdade é que o novo treinador do Sporting tem apenas o terceiro nível do curso de treinador (o UEFA A) e, tanto para dirigir equipas na Liga portuguesa como nas competições europeias, é necessário ostentar o quarto (o UEFA Pro). É nisso que se baseia o ataque de José Pereira, presidente da Associação Nacional de Treinadores, à decisão de Frederico Varandas, sustentando que o presidente leonino podia perfeitamente ter escolhido um entre os milhares de técnicos certificados com o curso necessário. Podia? Na verdade, sim. Mas não quis. E todos sabemos que se Silas falhar no Sporting não será certamente por falta do canudo.
Há profissões onde a falta de certificação académica é, de facto, grave. Falo, por exemplo, de médicos. De juízes. E, mesmo assim, o que não falta por aí são curiosos a dar consultas pela Internet, sustentados em abordagens alternativas, com defesa acérrima de quem os vai ver. Depois, há profissões que, francamente, se levam demasiado a sério. Em que consiste o curso UEFA Pro para treinadores de futebol? Socorramo-nos do programa do curso de 2018. Teve uma parte letiva de 30 dias, divididos em quatro períodos, um primeiro durante o defeso e os outros três nas datas FIFA para jogos de seleções. E teve depois uma parte prática, não especificada no programa, onde se diz apenas vagamente que “constará de trabalho nas equipas dos clubes em que os treinadores exercem a sua função e a realização de observações de equipas”. Explico isto só para que entendam que as 360 horas de que se compõe o curso não são bem a mesma coisa que os sete anos necessários para se ser cirurgião ou especialista em qualquer ramo da medicina.
Mas, perguntarão, se é assim tão simples, por que razão é que Silas não tirou ainda o curso? E, tanto quanto percebo, não o fez pela mesma razão que não o tinham feito antes dele treinadores como Costinha, Petit ou Sérgio Conceição. Há condições para a frequência dos cursos que não se compadecem com esta ideia dos treinadores feitos à pressão no momento em que acabam a carreira de treinadores. Nomeadamente, qualquer candidato à frequência do curso precisa de ter um ano de experiência como treinador depois de ter adquirido o nível UEFA A (que lhe permite treinar na II Liga, por exemplo, mas não na Liga principal) e, mais ainda, ter sido treinador durante três épocas desportivas. Ora, só neste momento Silas está a fazer a terceira época como treinador. Mesmo que quisesse ter feito antes o curso exigido pela UEFA e pela ANTF, não podia.
Perante isto, o que fazer? Continuamos todos a fingir que Silas não é o treinador do Sporting, promovendo conferências de imprensa e flash-interviews com o seu adjunto, Emanuel Ferro, ele sim portador do nível UEFA Pro? Claro que sim. É uma mentira, mas é uma mentira que o sistema promove. Impedimos Silas de se sentar no banco e até de dar ordens ou entrar no estádio? Claro que não. Isso seria o cúmulo do legalismo numa sociedade que em si fecha os olhos a muita coisa. Não tenho dúvidas de que Silas, como Costinha, Petit ou Sérgio Conceição antes dele, aprendeu muito mais com os grandes treinadores que teve durante a carreira (e no caso dele foram pelo menos José Mourinho, Jorge Jesus ou Carlos Carvalhal) do que iria aprender em 30 dias de aulas com os professores contratados para lhe darem o curso UEFA Pro. O que há a fazer é instituir que um ex-jogador com um determinado total de partidas na I Divisão ou na seleção nacional possa ser dispensado dos períodos de prática entre os cursos, de forma a que não tenhamos de continuar a assistir a estas tentativas ridículas de driblar o legalismo.
Sabem que mais? Eu não acabei a licenciatura em comunicação social. Iniciei-a em 1987, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, na mesma turma que o meu amigo Ricardo Costa, por exemplo. Em 1989, ambos estávamos já a trabalhar no Expresso e, como é normal, o tempo para as aulas, as frequências e os exames não era muito. Abdicámos, ambos, da ideia de terminar o curso após alguns anos sem avançar. E não sou menos jornalista por causa disso, porque por toda a vida sempre aprendi com grandes mestres, como o João Querido Manha, o José Pereira ou o João Marcelino, por exemplo. Há uns bons anos, fui convidado (e aceitei) ser professor de mestrado num curso de jornalismo especializado que o departamento de Comunicação Social da UNL promoveu. Avisei que não tinha acabado a licenciatura, mas o recentemente falecido professor Nélson Traquina não recuou por causa disso e manteve o convite. E só agora, perante esta polémica, penso no que teria sucedido se eu tivesse aceite outro convite que me foi endereçado: recentemente teria podido lecionar um módulo na disciplina de Comunicação e Imagem num dos últimos cursos UEFA Pro que foram promovidos pela Federação Portuguesa de Futebol. Recusei porque não acredito em trabalho gratuito e me fazia confusão ser pago pela FPF, além de que estaria a trabalhar para o outro lado, a ensinar os treinadores a lidar com os jornalistas. E só agora me surgiu mais uma razão: a minha presença, de um professor não licenciado, ainda iria ferir de ilegalidade os cursos de todos os treinadores que por lá andassem. E isso seria muito difícil de digerir.