Nunca fui de carneiradas. Da mesma forma que acho que o futebol é uma das áreas que tem todas as condições para ser pioneira neste regresso à “nova normalidade”, no esforço que vai ser viver com a Covid19, também admito perfeitamente que haja quem pense o contrário, que nenhuma atividade – muito menos uma que é, na raiz, lúdica – justifica que se coloquem em risco vidas humanas. Da mesma forma que acho que toda a economia vai ter de reabrir em downgrade – porque o importante aqui é reabrir – e que todos vamos ter de aceitar alguns sacrifícios, também admito que haja quem se recuse, por exemplo, a reduzir salários se a tal não for forçado por mecanismos legais. O livre arbítrio é uma qualidade humana e devemos bater-nos pela possibilidade de o exercermos. Desde que depois fiquemos confortáveis com as consequências.
Se, em Portugal, os artigos mais responsabilizadores ou restritivos do Código de Conduta que a Direção Geral de Saúde impôs ao futebol para lhe permitir o regresso provocaram algumas reações individuais de jogadores, imediatamente aplacadas pela intervenção de um sindicato particularmente conciliador e compreensivo, em Inglaterra as coisas estão mais difíceis, pois há mesmo quem se recuse a voltar a jogar por questões de segurança. Danny Rose, o lateral internacional que está emprestado pelo Tottenham ao Newcastle United, é um dos mais temerosos e, confrontado com a importância do regresso do futebol “para elevar o moral da nação”, até já disse estar-se “a marimbar para o moral da nação” [“I don’t give a fuck to the nation’s morale”, no original]. Se, por cá, os planos de redução salarial a futebolistas foram mais ou menos pacíficos – não se conhecem ainda vozes discordantes – já em Itália a guerra foi mais complicada e terá levado inclusive a casos como o de Rabiot, que só ontem foi convencido a regressar a Turim, aparentemente por discordar da diminuição do salário que a Juventus lhe paga – o quinto jogador mais bem pago de toda a Série A vai agora cumprir a quarentena que é imposta a quem entra no país e só poderá treinar lá mais perto do final deste mês, atrasando os planos do treinador.
Em casos como estes, cada um tem de ser responsável pelas suas próprias opiniões e ações. E, no final, manda quem pode e obedece quem deve.
Alguns jogadores portugueses não gostaram da ideia de terem de assinar um acordo que os responsabiliza por todas as consequências que a eventualidade de virem a contrair o vírus pode causar em redor deles e manifestaram esse desconforto nas redes sociais. Eu acho que eles têm razão, porque entendo que esse ponto não faz nenhum sentido a não ser para proteger as seguradoras. É negócio, portanto. Mas reconheço a legitimidade de quem quer impor essa questão. Há também quem seja contra outros aspetos do Código de Conduta: o presidente do FC Porto, Pinto da Costa, por exemplo, já veio dizer que discorda da imposição de confinamento a jogadores profissionais em suas casas até se concluir a Liga, pois esse mesmo confinamento não é imposto a profissionais de outras áreas, como a restauração. Percebo, mas esse até é um aspeto em que estaria disposto a defender mais restrições – não me escandalizaria, por exemplo, que as equipas ficassem em estágio forçado por mês e meio, até acabarem o campeonato. Porque a verdade é que o futebol é específico e, da mesma forma que entendo a especificidade na proteção, com a realização de testes de forma intensiva, indisponíveis para outras áreas (que os não pagam…), também entendo a mesma especificidade quando se trata de restringir liberdades.
Claro que ninguém pode ser forçado a voltar a jogar se sentir que isso o coloca em risco. Claro que ninguém pode ser forçado a aceitar responsabilizar-se em caso de infeção. Claro que ninguém pode ser forçado a manter o confinamento em casa, quando o resto da sociedade já está a abrir. Claro que ninguém pode ser forçado a aceitar uma redução salarial que vá além dos mecanismos legais do layoff, como ninguém pode ser forçado a aceitar prolongar um contrato que termina a 30 de Junho, apesar dos acordos coletivos recomendarem estas exceções. É aqui que o digo: não acredito em carneiradas. Serei sempre pela liberdade de cada um escolher o seu próprio caminho, desde que depois estejamos dispostos a aceitar as consequências. Quer isto dizer: quem não quer jogar, não joga. Porque exigir aos futebolistas que sejam, como já li nalguns comentários, “carne para canhão” face à necessidade de, como explicou Carlos Carvalhal em entrevista ao Guardian de hoje, “salvar o futebol em Portugal”, talvez seja puxar demasiado pelas restrições impostas a quem escolhe o futebol como modo de vida. Mas atenção: recusar as restrições implica que depois se tenham de recusar também os privilégios que ser jogador profissional de futebol permitem. Fico à espera de ver quem entra neste caminho.
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