Domènec Torrent prepara-se para assumir o comando técnico do Flamengo com uma missão que vai além de repetir as conquistas de Jorge Jesus, seu antecessor no clube. Ao ex-adjunto de Pep Guardiola não cabe apenas ganhar, mas incutir uma filosofia no emblema do Rio de Janeiro similar àquela que conheceu tão profundamente no FC Barcelona. Os responsáveis do Mengão querem ter a equipa assente numa estratégia de futebol que seja replicada também nas camadas jovens, tal como Johan Cruyff idealizou na Catalunha. Essa é uma das razões que explica a aposta num treinador relativamente desconhecido, mas que continua o trajeto da escola europeia no campeão brasileiro.
“Estamos preparados para tentar ganhar títulos e jogar bonito. O mais importante agora é respeitar o trabalho do Jorge Jesus, porque já é uma equipa ganhadora, e pouco a pouco mudar poucas coisas”, referiu Torrent aos jornalistas aquando da chegada ao Rio de Janeiro, na segunda-feira passada. Essa mudança contínua está relacionada com as diferentes visões do futebol entre o técnico catalão e Jorge Jesus. Ora, se o português dá prioridade a uma troca de passes mais vertical e com intensidade dentro de campo, o espanhol estabelece como chave o jogo posicional e a procura de espaços para receber a bola, não derivasse ele do famoso tiki-taka.
“Estar bem posicionado, ocupar bem os espaços é importante para circular a bola. Por que razão o Barcelona podia jogar com dois toques? Porque os jogadores, além da sua qualidade individual, estavam bem posicionados e assim encontravam apoios. Às vezes, diante de defesas retraídas, tens de mover a bola para encontrar os espaços e atacar”, explicava há tempos Torrent em conversa com o diário Olé. “Perguntem aos jogadores se eles têm liberdade ou não com essa forma de jogar. Eu não conheci ninguém que tenha dito que se sentia limitado com o estilo de jogo do Pep [Guardiola].” Mas, já lá vamos à troca de conhecimentos entre o treinador do Manchester City e o novo timoneiro do Flamengo.
Não é só o tipo de futebol apresentado pela equipa principal que está na mente dos dirigentes do Flamengo. “Queremos o desenvolvimento não só da equipa principal, mas também uma estruturação de toda a base. Essa visão da forma de jogar da base do Flamengo. O Dome [como Domènec Torrent é conhecido no mundo do desporto rei] sabe que temos essa expetativa e ele vai nos ajudar nesse processo”, disse Rodolfo Landim, presidente do clube, em entrevista à ESPN Brasil. Ora, esse foi precisamente um dos poucos pontos mais desregulares da passagem de Jesus por lá. “Essa foi uma das pequenas frustrações que tivemos ao longo do período com o Jorge Jesus. Não conseguimos com ele implantar isso que era uma vontade da direção do Flamengo. Mas de forma nenhuma ele se propôs a isso, não era parte do pacote. Sabíamos disso quando o contratámos, que ele ficaria focado só na equipa principal”, reconheceu ainda Rodolfo Landim.


Assim, a ideia é que o Ninho do Urubu vire uma espécie de La Masia do futebol brasileiro. E quem melhor para levar essa missão a bom porto do que alguém que passou mais de uma década como confidente de uma figura que pegou na construção de Cruyff e a tornou numa máquina de títulos e futebol perfeito? Torrent foi adjunto de Guardiola desde os tempos na equipa B do Barcelona e foi com ele para o conjunto principal em 2008/09. Desde então acompanhou Guardiola nas quatro temporadas na Catalunha, três no Bayern Munique e duas no Manchester City, pois decidiu traçar caminho próprio em 2018 quando assumiu o cargo de treinador principal do New York City FC, clube que pertence ao mesmo grupo proprietário dos cityzens. E nos Estados Unidos conduziu a equipa às meias-finais da MLS, naquela que foi a melhor campanha da equipa no campeonato norte-americano.
Aprender com Guardiola e vice-versa
Recuamos alguns anos no tempo e quando era jovem Torrent ainda tentou dar uns pontapés na bola, mas nunca passou dos escalões amadores. O talento não estava nos pés, mas sim na capacidade de liderar. Até chegar ao Barcelona, o técnico ainda teve de percorrer uma longa travessia no deserto com vários anos em clubes locais como o CE Farners, o Palafrugell e o Palamós. Em 2005, foi campeão da quarta divisão espanhola com o Girona FC e deu tanto nas vistas que chamou a atenção do maior emblema catalão. Torrent começou como olheiro, mas cedo foi convidado a integrar a equipa técnica de Guardiola, então ainda na equipa B do Barça.
O companheiro de dez anos, Guardiola, não tem dúvidas de que Torrent está mais do que preparado para assumir este projeto. “Eu acho que ele está absolutamente preparado para qualquer país. Ele fez a melhor temporada da história do New York City na última temporada. Ele é incrivelmente bem preparado, tem muita experiência. Não tenho nenhuma dúvida sobre sua capacidade. Eu aprendi muito com ele, aprendemos juntos. Parte do sucesso que tivemos em Munique e aqui em Manchester foi por causa dele. Fico feliz de saber que as pessoas pensam nele neste momento estranho, da pandemia do coronavírus”, referiu o timoneiro do Manchester City ao Esporte Interativo.
Nos tempos em que era braço-direito de Guardiola, Torrent tratava de aspetos fulcrais como a análise às equipas adversárias, o aperfeiçoamento de bolas paradas ofensivas e defensivas e conduzia ainda regularmente as sessões de treinos. Para além disso, era ainda o principal conselheiro para as decisões de Pep, tal como ficou provado com uma sugestão que fez em Munique. Para que se perceba um pouco da visão que Torrent traz ao futebol, foi graças ao novo treinador do Flamengo que Lahm terminou a carreira a jogar no meio-campo e não na lateral, como fazia até aí. Em agosto de 2013, então na Supertaça Europeia entre Bayern Munique e Chelsea, Torrent sugeriu a Guardiola colocar Lahm a médio, deslocação que Pep considera fundamental para os bons resultados conseguidos em solo alemão. “As palavras do Dome foram chave. Se ganharmos alguma coisa nesta temporada, será graças àquele dia”, dizia o técnico em 2014, tal como relatado em “Guardiola Confidencial”, biografia escrita por Martí Perarnau.


O lateral-direito Rafinha foi treinado por Torrent e Guardiola no Bayern e vai ser agora orientado novamente pelo novo técnico do Flamengo. “Foram três anos que trabalhámos juntos no Bayern. Ele já tinha trabalhado com o Pep no Barcelona e depois foi para o City com ele. É a escola do Cruyff, não é? [Torrent] É alguém que sabe tudo e mais um pouco de bola. Tanto é que os treinos no Bayern eram dados por ele, o Pep ficava só a corrigir. É alguém que dispensa comentários. Eu conheço bem e posso falar com propriedade, porque trabalhei com ele. E não só eu, não é? Ele fez muita gente no Bayern crescer muito”, salientou Rafinha em entrevista no programa Resenha, da ESPN.
Apesar de uma década de conquistas entre três localizações distintas, Guardiola considera que nem tudo é igual no estilo de futebol implementado por si e por Torrent desde que o ex-adjunto decidiu tomar rumo próprio. “Eu acredito que sim [que os dois têm uma filosofia de jogo parecida]. Ser agressivo com a bola, tentar marcar golos, defender bem… Mas cada técnico tem os seus detalhes particulares, as suas próprias coisas. Não é copiar e colar. Pep é Pep, Domènec é Domènec. Antes de estarmos juntos, ele era um treinador e fazia as coisas do jeito dele. Eu aprendi muito com ele, e espero que ele tenha aprendido algo connosco também”, referiu Guardiola.
Foi nos Estados Unidos que Torrent traçou o caminho em nome próprio que o conduziu agora à sucessão de Jesus no Rio de Janeiro. O City Football Group teve um papel fulcral para isso, pois Torrent passou de adjunto no Manchester City a treinador principal no New York City FC, duas equipas do mesmo aglomerado. No entanto, o catalão mostrou serviço. Na primeira temporada, em 2018, ficou em terceiro lugar na conferência Este da MLS e marcou presença nos play-offs, tendo sido eliminado na primeira ronda. No ano seguinte, foi mais além e protagonizou a melhor época da história do clube com o primeiro lugar no Este. O emblema de Nova Iorque acabou eliminado nas meias-finais, mas conseguiu ainda assim apurar-se pela primeira vez para a Liga dos Campeões da CONCACAF.
A herança no Flamengo pesa. Torrent chega ao clube logo após o Mengão conquistar a Taça Libertadores, o Brasileirão, a Supertaça Sul-Americana e a Supertaça do Brasil. O campeonato brasileiro está prestes a começar a meio deste mês de agosto, mas o técnico não se pode esquecer que para além dos resultados, tem também de levar a bom porto o projeto de incutir os valores do Barcelona no Flamengo. Para isso mesmo, tem apenas de se inspirar naquele que o fez sonhar sem treinador. “Fui assistir a final em Wembley em 1992, quando, finalmente, conquistámos [Barcelona] o título europeu. Eu sempre disse a todos: vou ser treinador por causa do Johan [Cruyff]”, confidenciou em tempos Torrent. Agora, é hora de honrar o legado noutras paragens.
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