Pontuadas inicialmente por monges escoceses e irlandeses e colonizadas mais tarde por vikings descontentes com o reinado indomável de Harald, as Ilhas Faroé são um dos grandes bastiões de riqueza da Europa. No Porto de Tór, situado a meio caminho entre a Noruega, a Grã-Bretanha e a Islândia, unem-se beleza natural, história, política e cultura como em poucos países no Mundo. Nas Ilhas Faroé, as ovelhas superam a população humana em mais de vinte mil unidades, mas 97% da economia circula à volta da pesca e dos peixes. É neste país extraordinário e fascinado por gordura de baleia que a bola volta a rolar este fim de semana, com um português envolvido: Rafael Veloso, ex-guarda-redes da formação do Sporting. O arquipélago prepara o regresso à normalidade após o milagre dos salmões.
O início do campeonato estava previsto para inícios de março, mas a disseminação da pandemia de covid-19 por todo o Mundo travou o futebol nas Ilhas Faroé. Agora, sem novos casos confirmados há vários dias e com apenas três ativos, o país prepara o regresso a uma normalidade que inclui o futebol. Entre fatores geográficos e demográficos, parte do segredo do sucesso do combate à pandemia esteve relacionado com salmões e, a uma semana do início da Betri deildin menn, o país não conta qualquer morte associada ao novo coronavírus.
Não é o país com a maior tradição futebolística, nem mesmo entre os nórdicos, mas a ascensão recente do futebol nas Ilhas Faroé, à medida que o profissionalismo avança e o interesse pelo jogo aumenta, ameaça uma reedição do conto de fadas islandês num futuro próximo. Depois de anos a servir de bombo da festa do futebol europeu, as Ilhas Faroé tiveram a sua melhor qualificação de sempre em 2017, quando arrancaram duas vitórias e três empates ao seu grupo de qualificação para o Mundial disputado na Rússia, qualificação terminada com uns honrosos 16 golos sofridos em dez encontros, um mínimo histórico para o pequeno país insular.
O registo positivo na qualificação para o Mundial 2018 não teve seguimento na qualificação para o Europeu (apenas uma vitória e nove derrotas no provável grupo da morte da competição), mas já antes, durante a Liga das Nações, as Ilhas Faroé deixaram boas indicações ao terminar o grupo 3 da quarta divisão europeia na terceira posição e a quatro pontos do segundo classificado, o Azerbaijão, o que podia ter colocado a seleção nórdica um patamar acima. Com uma história por escrever no livro do futebol e num país com tanto de tudo e do melhor, só mesmo questões culturais – e, claro, populacionais – explicam que as Ilhas Faroé não sejam uma força ainda mais temível.
“Temos boas condições de trabalho, não nos falta nada. No caso do Vestur temos um estádio para a formação e outro para a equipa sénior, sub-21 e feminina. Em termos de instalações é impecável. É tudo sintéticos, aqui não existem relvados. Em termos de qualidade… existe qualidade, simplesmente acho que nestes países o futebol não é tão profissionalizado, não está tão enraizado. Os rapazes, neste caso, não o levam tão a sério como em Portugal. Em Portugal pensamos ‘quero ser jogador de futebol, vou dar tudo, deixar a escola’ e é tudo cem por cento para o futebol. Aqui não. Aqui jogam futebol, têm qualidade, mas têm vidas à parte. Têm outros trabalhos, fazem algo mais extrafutebol. Raramente é a prioridade, até na primeira liga, a maior parte dos jogadores tem o seu trabalho e joga futebol. Até porque nestes países trabalhar compensa muito. Vale muito a pena. A grande diferença é esta: há mais vida para além do futebol. Por muito que os locais adorem e tenham qualidade, continuam a ter o futebol em segundo plano”, diz-nos Rafael Veloso, muito provavelmente o primeiro jogador português de sempre a jogar nas Ilhas Faroé – pelo menos tendo em conta os registos disponíveis em sites como o Transfermarkt.


Rafael Veloso passou pelos juniores do Sporting, jogou no Belenenses e no Oriental, tendo um currículo ao nível das seleções jovens portuguesas ao nível de muito poucos. Pela seleção das Quinas esteve presente em torneios de referência como Toulon em 2013, mas também em Mundiais Sub-20 (2013) e Europeus Sub-17 (2010) e Sub-19 (2012). Reza a lenda que, em tempos, o próprio Real Madrid o queria “arrancar” de Alcochete. Agora, aos 26 anos, relança a carreira num percurso que parece escolhido a dedo por Odin e Thor. Depois de dois anos na Noruega e outro na Islândia, chegou às Ilhas Faroé. Apesar da população não ultrapassar por muito as cinquenta mil pessoas, dez por cento delas são futebolistas federados (5000). Existem 20 relvados com dimensões universais no país, muitos deles tão perto do oceano que muitas são as bolas que se perdem na vastidão do Atlântico gelado.
“Quando joguei na Noruega, tive um colega sérvio e foi através dele que vim parar aqui. Ele está aqui a jogar, também na segunda liga, e sei que o meu nome foi apresentado a alguns clubes. No caso do Vestur, o treinador é norueguês e jogou contra mim na Noruega. Acabou por se juntar tudo. Ele teve um grande interesse em mim e acabou por se concretizar. O meu colega abriu aqui as portas com algumas pessoas e num desses contactos falei com o treinador do Vestur, que lá está, já me conhecia, e se mobilizou”, conta-nos.
O milagre dos salmões e uma realidade paralela
Com 184 dos 187 casos confirmados já curados – três estão ainda ativos -, as Ilhas Faroé passaram praticamente ao lado da pandemia que alastra pelo Mundo e que por ele muitas vidas ceifou. Sem qualquer morte registada, o país vai regressando aos poucos à normalidade. Sem trancas à porta, porque, ali, a segurança é total. Stress e crime nem vê-lo, assegura-nos Veloso, uma realidade à parte numa sociedade quase perfeita que custa a imaginar. Uma normalidade à qual se chegou depois de uma espécie de “milagre dos salmões”.
Debes Christiansen terá a sua história para sempre ligada à do país. O cientista veterinário das Ilhas Faroé é por esta altura uma espécie de herói nacional, depois de ter adaptado o seu laboratório de testes em salmões ao combate à Covid-19. Fundamental, por isso, para que os números do país se tenham mantido tão baixos e para que, à escala mundial, as Ilhas Faroé sejam um milagre de resistência ao vírus. Aumentando a capacidade de testar a população devido ao serviço de Christiansen, as Ilhas Faroé evitaram cadeias de contágio: em nenhum outro país do mundo, uma percentagem tão alta da população foi testada para o vírus.
Por esta altura, apenas um habitante da ilha ainda se encontra hospitalizado devido à Covid-19 e as Ilhas Faroé são, a par da Geórgia e do Liechtenstein, o único país sem vítimas fatais a lamentar. Nada disto teria sido conseguido sem Debes Christiansen. Segundo as autoridades locais, o sucesso deveu-se à visão do cientista, também diretor do departamento de doenças animais e piscívoras do laboratório nacional daquele país. Christiansen terá alertado o governo autónomo do país (as Ilhas Faroé fazem parte do reino da Dinamarca) já em janeiro para os efeitos de uma disseminação do vírus quando este estava ainda contido na China.
Habitualmente utilizado para testar salmões em possíveis infeções virais, o laboratório de Christiansen foi adaptado para testar a covid-19 em humanos e a produção de testes em massa permitiu que mais de 10% da população pudesse ser testada. As autoridades médicas conseguiram por isso rastrear e colocar em quarentena todos aqueles que contactaram com os 187 casos confirmados. Caso os testes tivessem de ter sido enviados para a Dinamarca, a história teria sido bem diferente e, hoje, o país dificilmente se encontrava no estado em que se encontra atualmente.
Tanto, que segundo Rafael Veloso, a normalidade não chegou a ser colocada em causa no dia a dia. “Eu já estou cá desde meio de janeiro. Infelizmente aconteceu o que aconteceu. As pessoas aqui não fazem a mínima ideia do que está a acontecer noutros países. Neste momento temos três casos ativos que até vieram de pessoas daqui que estavam a viver na Dinamarca e que voltaram para casa. Aqui as pessoas fazem uma vida muito tranquila, não há multidões, o país é um país grande, mas tem uma densidade populacional reduzida. São cinquenta mil pessoas. Por isso, só por si, não senti grande diferença em deixar de ver pessoas ou de sentir que as pessoas estavam mais fechadas em casa. Claro que algumas coisas fecharam, devemos ter sido dos primeiros países a fechar escolas e restaurantes… Desde o início que tomaram as medidas necessárias. Acabou por ser uma normalidade dentro desta anormalidade. Agora já está tudo a voltar ao normal, se assim podemos dizer. Os infantários, escolas, restaurantes estão todos a abrir entre esta e a próxima semana. Já está tudo a funcionar”.
Num país com tudo de bom, nem mesmo uma pandemia mundial a acontecer foi suficiente para preocupar quem lá mora. “Eu aqui sempre estive muito descansado. Claro que sempre preocupado com a família e os amigos em Portugal, mas aqui nunca nos sentimos ameaçados de forma alguma. Sentimos sempre que ao mínimo sinal, ao mínimo sintoma que tivéssemos, na mesma hora éramos testados. Infelizmente em Portugal não é bem isso que se passa. Se uma pessoa aqui tem sintomas é testada, bem como toda a família. Torna tudo muito mais fácil. As condições de saúde são muito melhores. Mesmo sendo um país ‘pequeno’, trabalha-se muito bem. Nunca falta nada. Nunca se viu aqui desaparecer o álcool, ou não haver testes suficientes, porque eles próprios desenvolveram os testes e não os têm de comprar a ninguém. As pessoas são muito civilizadas: nunca desapareceu nada do supermercado que fosse importante e estivesse esgotado durante dias. As pessoas fizeram a sua vida normal, praticamente”, conta-nos o jovem guardião.


O regresso do futebol
As fotografias impressionam quem as vê. De cores térreas, onde pouco verde se observa, sempre rodeadas de água, as Ilhas Faroé são dotadas de uma beleza natural ímpar no Mundo. Rafael Veloso passou pela Islândia e pela Noruega, mas nem por isso deixou de se apaixonar por um país cuja capital, Torshavn, traduzida, significa Porto de Tór. A cultura nórdica e a presença dos antigos Deuses está um pouco por toda a parte – na primeira divisão há um Vikingur e o HB tem como símbolo o martelo de Tór – e é a 30 minutos de carro, num percurso permitido por um túnel subaquático que o antigo internacional jovem por Portugal irá disputar o seu futuro desportivo.
“Nós somos da ilha de Vágar. Fica a trinta minutos de carro de Torshávn. Temos um túnel subaquático que liga Vestur a Thorshávn, porque são ilhas diferentes. Vestur fica em Vágar e Torshávn na Ilha de Streymoy”, situa-nos Rafael Veloso explicando-nos depois qual o verdadeiro cenário desportivo que irá enfrentar esta temporada.
“É um clube de segunda divisão que pretende subir. É uma equipa mais jovem que pretende a promoção, esperamos que seja este ano, é essa a ambição. É uma equipa muito jovem que tem bons valores e com alguns jogadores mais velhos que ajudam na inclusão deles”, explica-nos Veloso acerca de uma competição com características muito próprias. “A segunda liga é uma liga muito jovem, maioritariamente preenchida por equipas B, e que tem quatro ou cinco, de dez, que não são equipas B a lutar pela subida de divisão. No ano passado, a janela de subida de divisão era muito fechada. Se não entrasse nenhuma equipa principal nos dois primeiros lugares, ninguém subia. Não é como em Portugal, que se uma equipa B estivesse em primeiro, subiam segundo e terceiro. Aqui se uma equipa principal não estivesse nos dois primeiros, até podia não subir ninguém. Este ano já não vai ser assim e os clubes já estão a apostar um bocadinho mais para subir de divisão. O nosso objetivo é tentar a subida de divisão”.
Depois de estar inicialmente marcada para começar em março, é dois meses mais tarde que a bola volta a rolar nas Ilhas Faroé. Para Rafael Veloso, porém, há que esperar um pouco mais. “Nós jogámos uma jornada antes do coronavírus, no dia 3 de março. Por isso a primeira liga começa agora a jogar-se no dia 9 e nós jogamos depois, no dia 16. Nós já jogámos uma jornada, eles ainda não tinham jogado, por isso recomeçamos um pouco mais tarde”.
Hoje, o antigo guardião do Sporting, Belenenses, Oriental e Deportivo está mais do que habituado às vicissitudes dos países do Norte da Europa. Mas mesmo quando já pouco o podia surpreender, há sempre algo especial ao virar da esquina. Ou, no caso das Ilhas Faroé, enterrado entre batata e por cima de uma fatia de pão.
“A alimentação é normal. Conseguimos encontrar praticamente tudo o que temos em Portugal. Deixei praticamente de comer carne, é tudo mais à base de peixe e vegetariano. O peixe aqui é provavelmente um dos melhores do Mundo. Criam o salmão no mar. É difícil de explicar, mas têm umas redes circulares enormes no meio do mar. Em mar aberto. O peixe é fantástico. Coisas estranhas que já comi…? Baleia, mas já tinha comido na Islândia. Aqui comem até gordura de baleia e isso posso dizer que tentei provar, mas não deu. É muito estranho. Eles comem, imagina, pão, gordura de baleia, com batata por cima. Fazem ali uma sandes muito estranha”, conta-nos com satisfação – bom, satisfação talvez não seja a palavra certa.


No nosso imaginário, já tínhamos Rafael Veloso sentado à beira mar junto a uma casinha preta com relva no telhado. Afinal, é assim que muitas páginas de fotografia apresentam e representam o país, mas a realidade é bem mais colorida do que isso. “Por acaso a minha casa não tem relva no telhado [risos]. As casas aqui têm praticamente cada uma a sua cor, assim ao longe fica tudo muito bonito. É um país extraordinário, confesso que não tinha grande informação, não só do clube, como das próprias Ilhas Faroé. É um país brutal, as pessoas são impecáveis, fazem-nos sentir em casa, tanto a mim como à minha mulher. Têm uma qualidade de vida brutal e o stress por aqui nem vê-lo”.
Numa história que verdadeiramente dá sentido à expressão “primeiro estranha-se e depois entranha-se”, Rafael Veloso já não se deixa surpreender com a luz que emana pelo quarto mesmo quando são quatro da manhã durante os meses de verão, altura em que os campeonatos nórdicos seguem em velocidade de cruzeiro. Nas Ilhas Faroé, o que o surpreendeu foi mesmo o nível de civismo e segurança que encontrou.
“O grande choque que tive, tive-o há três anos, quando fui jogar para a Noruega. Países onde o stress não se vê e onde as pessoas são impecáveis. Toda a gente confia uns nos outros. Uma das principais coisas é que as pessoas não trancam a porta de casa, ninguém mesmo. Isso comparado com Portugal é uma realidade completamente diferente. Crime nem vê-lo. Toda a gente, posso dizer quase a cem por cento, tem uma qualidade de vida brutal. Ninguém passa por dificuldades, é uma coisa incrível, quem me dera que todo o mundo fosse assim. Têm a própria cultura e mentalidade deles. É fascinante. Quem puder, digo-o a toda a gente, que visite. Não só a Noruega, mas as Ilhas Faroé. Iria aprender muito”, diz-nos.
“A falta de luz… No Inverno de facto temos falta de luz, temos poucas horas de Sol, mas no Verão é o oposto, temos quase vinte e quatro horas de luz. É uma grande diferença, de facto. É uma variação muito grande, mas ao fim de uns tempos uma pessoa habitua-se. Eu pelo menos não senti grandes dificuldades, até porque no Inverno quando é mais noite estamos de férias e eu costumo ir para Portugal. Nestes países o calendário desportivo é diferente e tens aquele mês e meio que é pior, então estamos em Portugal e não sentimos muito”, explica-nos. Isto, mesmo que nem sempre as casas estejam preparadas da forma mais eficaz para evitar o sol eterno.
“As casas estão preparadas, tanto no inverno em que são aquecidas e estão preparadas para o frio, como no verão para a luz. Ainda assim, no entanto, eles aqui não têm estores. É tudo blackouts, umas cortinas, e confesso que não protegem a cem por cento, mas para eles é normal e, entretanto, uma pessoa habitua-se. Ao início fazia confusão, mas agora já vou para a cama sem problemas”. Nas Ilhas Faroé, como na Islândia, os maiores problemas acabam por ser outros.
“Mais do que a luz, o que afeta mais o rendimento desportivo, principalmente na Islândia e nas Ilhas Faroé, na Noruega não senti tanto, é que são países muito ventosos. Com temperaturas mais negativas. Nesse aspeto isso acaba por afetar mais. Não é a mesma coisa jogar com vinte, vinte e cinco graus sem vento e tempo perfeito, aí já custa um bocadinho mais. Mas no caso de ser noite ou ter mais ou menos horas de luz não senti nenhuma dificuldade. Com temperaturas mais baixas é mais difícil. Congelas muito rápido, então quando está vento… ficamos frios muito rapidamente. Principalmente os dedos dos pés ficam gelados”, confessa-nos.
Uma realidade sem paralelo em Portugal e nenhum arrependimento
Rafael Veloso deixou o futebol português em 2016 quando, ao serviço do Oriental, por empréstimo do Belenenses, efetuou 24 dos 53 jogos disputados pelo emblema de Marvila naquela temporada de 2015/16. Desde então seguiram-se passagens pela Noruega – determinante para a chegada às Ilhas Faroé – e Islândia, onde encontrou uma seriedade que não trocava por uma qualquer maior visibilidade possível por jogar em Portugal. Com uma carreira pelos escalões jovens ao alcance de poucos, mas uma história por escrever no futebol sénior, Rafael Veloso mantém o espírito positivo: tudo acontece por alguma razão.
“É complicado falar no passado. Tudo acontece por alguma razão. Com pena minha, se não aconteceu, não aconteceu, mas temos de seguir em frente e tenho aproveitado ao máximo o que a vida me tem trazido e sou muito feliz e grato por estar aqui agora nas Ilhas Faroé. Podem não ser campeonatos de países de topo, que não são, mas são campeonatos onde encontras uma estabilidade de vida e financeira muito particular, não falta nada a ninguém”, afirma.
“É verdade que em Portugal há uma visibilidade brutal, mas infelizmente temos muitos casos de ordenados em atraso e falta de palavra aqui e ali, e a realidade é que a palavra nestes países é mais do que suficiente. Não falta nada a ninguém. O que é preto é preto, não é branco ou cinzento. Vale muito a pena. É algo que vai mais além do futebol”, e, isso, para Rafael Veloso, neste momento, é inegociável.
“Neste momento estou muito contente por estar aqui nas Ilhas Faroé. Não sei o que o futuro trará. Se um dia voltarei a Portugal para jogar futebol ou não, não sei. Neste momento as portas estão um pouco fechadas, mas o futuro ninguém sabe. Não podes dizer que sim ou que não, mas posso dizer que estou muito feliz aqui e se puder continuar por aqui ou por outro país nórdico, continuarei de bom grado”, atira com esperança na voz.


Do Milagre de Landskrona à entrada no top-100 Mundial
Ainda sem qualquer participação numa grande competição de seleções, o progresso futebolístico das Ilhas Faroé tem sido paulatino, mas assertivo. Se há menos de uma década a equipa insular que até 1988 apenas disputava amigáveis até obter independência futebolística da Dinamarca, somente ambicionava não ser goleada por qualquer adversário que lhe surgisse pela frente, e raramente se aproximava da barreira do top-100, hoje, as Ilhas Faroé já pontuam em fases de qualificação. Uma evolução que muito se assemelha à conseguida pela Islândia e que teve o seu clímax na participação inédita dos islandeses no Europeu de 2016.
Se em 2013 a equipa das Ilhas Faroé não ia além do 170º lugar no Ranking FIFA de seleções, registo que se aproximava perigosamente do pior ranking da história da federação (o 194º de 2007), hoje, a presença entre as cem melhores seleções mundiais já é uma constante, mesmo que atualmente as Ilhas Faroé ocupem o 110º lugar. Porém, entre 2015 e 2018, a seleção insular esteve ininterruptamente entre os cem primeiros, com o melhor ranking de sempre a ter acontecido em 2016, quando alcançou o 83º lugar. Em 2017, um algoritmo calculou que as Ilhas Faroé eram mesmo a nação futebolística em maior sobre rendimento no Mundo, aquela que conquistara mais pontos per capita. Afinal, apenas três federações UEFA têm uma população inferior à das Ilhas Faroé. Um feito extraordinário para uma seleção em que mais de metade dos intervenientes são ainda futebolistas em part-time.
Longe vão os tempos em que precisou pedir um campo emprestado à Suécia e, com isso, causar uma das maiores surpresas da história do futebol mundial. Aconteceu em 1990, precisamente por ocasião do primeiro encontro oficial da história da federação feroesa: num jogo de qualificação para o Europeu de 1992, as Ilhas Faroé bateram a Áustria por 1-0, com um golo de Torkil Nielsen, então um comercial transformado em herói nacional. Um jogo disputado em Landskrona, na Suécia, já que não existia nas Ilhas Faroé qualquer campo relvado.
O resultado ficou para sempre conhecido como o Milagre de Landskrona e tamanho “upset” na história da federação talvez só tenha tido eco algumas décadas mais tarde quando, em 2016, as Ilhas Faroé bateram a Grécia, aquando da fase de qualificação para o Europeu vencido por Portugal. Nunca uma seleção tão abaixo no ranking FIFA havia vencido outra tão acima. Quando as Ilhas Faroé venceram a Grécia, havia 169 lugares de diferença entre ambas as seleções. Enquanto os gregos eram os 18º colocados, os feroeses eram somente os 187º.
Ao longo da história, porém, não faltaram figuras importantes a comandar a seleção das Ilhas Faroé. Pelo comando da principal equipa da federação daquele país passaram nomes como Allan Simonsen, um dos maiores talentos da história do futebol nórdico e ao qual é associada a passagem do amadorismo ao estatuto profissional, sendo hoje figura fundamental na elevação do nível do futebol daquele país, mas também Henrik Larsen (com quem ficaram à beira de um escândalo na Alemanha ao perder por 2-1 enviando uma bola ao poste nos últimos segundos do encontro), Brian Kerr ou Lars Olsen, que em 1992 se sagrou campeão europeu enquanto jogador e acabou por levar as Ilhas Faroé à melhor fase de qualificação da sua história. Hoje, a seleção feroesa tem na frente o sueco Håkan Ericson, que em 2015 fez história ao levar a seleção Sub-21 sueca a um inédito título europeu da categoria.
Uma popularidade pouco habitual
Tal como no caso da liga bielorrussa, a escassez de futebol profissional em atividade por consequência da pandemia de covid-19 que assola o Mundo parece estar/vir a trazer uma popularidade pouco habitual à Betri Deildin, Premier League do futebol feroês. Tanto, que a cadeia de televisão norueguesa TV 2 Sporten, mais habituada a transmitir os jogos da popular liga do país escandinavo, tão em voga nos dias que correm, já garantiu os direitos de transmissão de toda a primeira volta da competição. Uma liga sem grandes reservas defensivas a não ser nos clubes de fundo da tabela, e muito à mercê do vento impiedoso que é imagem de marca do país.
“A nossa forma de jogar é um pouco um misto de tudo. Só posso mesmo falar acerca da liga, pois temos um novo selecionador e não há certeza absoluta do que irá trazer à nossa seleção. Estou entusiasmado por vê-lo naquele lugar, ainda assim. Mas na liga acontece um pouco de tudo. Desde um clube de meio da tabela, como o Skála, a jogar um futebol controlado ‘primeiro a defesa’, até um clube como o NSÍ ,cuja mentalidade é mais ‘nós só queremos mesmo é marcar golos’”, situa-nos Kasper Neesgaard, dedicado seguidor da liga das Ilhas Faroé e à qual dedica uma popular conta na rede social Twitter.
“Há muito pontapé longo a partir de pontapé de baliza, mas quando a bola está em jogo tenta-se realmente jogar futebol em vez do típico ‘bola longa e depois logo se vê o que acontece’. Naturalmente há jogos em que o vento acaba por se tornar num fator determinante e aí é que há mais pontapé para a frente. Esses jogos acabam por ser divertidos à sua maneira também. Clubes como o IF, o TB ou o EB/Streymur, que habitualmente lutam pela manutenção, esses acabam por ter uma postura bem mais defensiva. Quando ficam em desvantagem parece que nem querem muito saber. Ou arrancam um empate, ou acabam goleados. O IF, por exemplo, acabou a época passada com uma diferença de golos negativa de -54 golos em 27 jogos!”, diz-nos Kasper.
Mas poderáão, um dia, as Ilhas Faroé escrever um capítulo tão bonito quanto aquele que a Islândia escreveu durante o Euro 2016? Apesar das melhorias paulatinas do futebol feroês, Kasper Neesgaard tem algumas reservas a esse respeito. Não só por questões desportivas, mas também culturais, que muito terão ainda de evoluir. “É difícil de dizer, mas tenho dúvidas. A Islândia tem imensos jogadores a jogar fora do país, enquanto nós temos alguns na Dinamarca, Islândia, na segunda divisão alemã, escalões jovens em Inglaterra e na Noruega”, explica-nos.
“É certo e concordo que temos alguns jovens jogadores interessantes, mas serão bons o suficiente para explodir ao mais alto nível. Tenho dúvidas. Mas repara no sentimento nacional e global quando vencemos a Grécia. Foi como se tivéssemos ganho o Europeu! Havia pessoas na rua, imensas em bares, foi uma festa brutal. Quando os jogadores regressaram a casa houve diretos do avião, da aterragem e durante todo o caminho até à Câmara Municipal de Torshávn onde tiveram uma receção gigante. Foi um dia incrível”, recorda.
Ainda assim, o sucesso e enraizamento do jogo na cultura não se faz de um dia para o outro e mediante episódios esporádicos. Pode, porém, ter sido esse o ponto que espoletou um fenómeno do qual as Ilhas Faroé tirarão proveito daqui a uns anos. Só o futuro o dirá. “O futebol é muito popular por aqui. Qualquer homem, desde os pescadores ao Mayor, todos, vão ao estádio uma vez de vez em quando. Apoiamos os nossos clubes e ficamos frustrados se eles não vencerem, mas depois é tipo… a vida continua”.
Equipas e jogadores a seguir
“Quem seguir com atenção? Os campeões em título, sem margem para dúvidas. Estiveram em bom plano durante a pré-temporada e, em comparação com os outros clubes, e dentro do contexto da liga, têm um orçamento gigante”, diz-nos Kasper Neesgaard. “Será interessante acompanhar o KÍ, ainda assim. Por diversas razões deixaram sair vários dos seus principais jogadores esta temporada, especialmente Seba Avanzini que tinha vindo na temporada anterior e foi um grande sucesso no clube”.
Mas não é só sobre o KÍ Klaksvik que devemos deitar os nossos olhos. Também o HB, clube de Torshávn e emblema mais bem-sucedido do país com 23 títulos nacionais deve ser tido em conta. “O HB teve uma grande temporada na última época. Ganhou a Taça e vai ser muito interessante de seguir. O antigo treinador regressou à Islândia [era Heimir Guðjónsson que chegou a defrontar o Nacional e o SC Braga ao comando do FH que tornou no melhor do país] e agora têm o dinamarquês Jens Berthel Askou que até já treinou na primeira divisão da Dinamarca [foi treinador do Vendyssel em 2018/19 ainda que não tenha evitado a despromoção ao segundo escalão].
Ainda assim, para Kasper Neesgaard, o melhor treinador da competição é Mikkjal Thomassen, o homem que levou o KÍ ao título na temporada passada com um registo ofensivo avassalador, mas nem por isso desequilibrado defensivamente já que o campeão acabou a época com o melhor registo defensivo da competição. “O Mikkjal Thomassen esteve em conversações com um clube da segunda divisão da noruega, mas decidiu ficar nas Ilhas Faroé (nunca se saberá se chegou mesmo a ter uma proposta concreta). Na minha opinião é um treinador subvalorizado, jovem, vanguardista e progressista. Quando me perguntaram quem devia ser o próximo selecionador do país indiquei o seu nome. Ainda assim, fico feliz que continue a treinar um clube por cá e se mantenha no futebol de clubes pois é capaz de ter um estilo demasiado ofensivo para o nosso bem”.
Quanto aos principais jogadores a seguir, Kasper Neesgaard não faz por menos e dá-nos sete nomes a ter em conta nas próximas semanas e até os classifica de zero a… seis (deve ser coisa típica das Ilhas Faroé, imaginamos).
Johannes Bjartalid (23, KÍ, ******)
É um dos, senão mesmo O, melhor jogador da Betri Deildin. Um jovem jogador que chegou finalmente à seleção na temporada passada e marcou uns incríveis 23 golos em 30 jogos na liga passada. Foi nomeado o jogador do ano pela sua campanha de 2019 incrível. Tem andado mesmo em testes em várias equipas da primeira divisão norueguesa.


Adrian Justinussen (21, HB, ******)
Quão promissor Justinussen é. Dominou por completo a liga em certos momentos. É um grande marcador de livres, mas um jogador extremamente agradável de seguir. É querido por clubes de outros países, mas tem um medo terrível de voar o que também só o deixa à disposição do selecionador nacional para os jogos em casa.


Patrik Johannesen (24, KÍ, *****)
É Patrik? É Troy Denney? Johannesen é um avançado super trabalhador, batalhador, com um faro para o golo como poucos avançados têm. Marcou 19 golos na temporada passada, muitos como extremo esquerdo que até nem é a sua melhor posição. Esperem dele um avançado centro esta época. Tem classe escrita por todo o corpo. Chegou a ter uma temporada na Noruega há uns anos, mas a oportunidade acabou por se esfumar devido a uma lesão grave no joelho.


Odmar Færø (30, KÍ, *****)
SUPER-ODMAR IN DA HOUZE! Depois de ter jogado algumas épocas na Escócia e a mais recente na Noruega, Super-Odmar está de regresso. É um habitual internacional pelas Ilhas Faroé que é um monstro defensivo. Aliás, basta olhar para ele que já ficamos todos um bocadinho assustados.


Sonni Ragnar Nattestad (25, B36, *****)
Bom, o que dizer. Que jogador podia ter sido (e ainda pode, claro). Tantas aventuras falhadas na Europa, mas é um defensor tão sólido! Acaba sempre por arranjar problemas nos clubes por onde passa devido a questões extrafutebol. É habitualmente internacional pelo país.


Stefan Radosavljevic (19, B36, *****)
É uma grande promessa e já leva uns impressionantes 80 jogos na Betri Deidlin nas pernas. 80! E só tem 19 anos! É um extremo puro com um impressionante e enérgico estilo de jogo. Supersónico, um grande companheiro de equipa e um jogador perfilado para os Sub-21 do país. É muito entusiasmante vê-lo jogar.


Klæmint A. Olsen (29, NSI, *****)
Que jogador, que avançado, QUE HISTÓRIA! Nunca foi suposto Olsen jogar futebol devido ao facto de ter os pés tortos, mas de alguma maneira conseguiu-o e marca golos por diversão. É habitualmente presença no banco da seleção nacional e muitas vezes o melhor marcador da nossa liga. No último ano marcou uns insanos 27 golos em 30 jogos. E além de tudo isto trabalha numa escola.


Gostei muito de ler este artigo.
Estou curioso em conhecer as ilhas Faroé
Espero que o Rafael Veloso suba de divisão, seja campeão e venha a representar a seleção.
Estive em Torshavn com a seleção nacional aqui há uns anos e gostei bastante.