A diretora-executiva da Liga, Sónia Carneiro, já prometeu “futebol de segunda a domingo” na retoma da competição. Se há anos se debate em Portugal – e no Mundo – para quem deve ser o futebol, se para os adeptos que vão ao estádio ou para os que ficam comodamente a ver no sofá de casa, as circunstâncias atuais inclinam decisivamente os pratos da balança para um dos lados, já que os estádios estarão fechados a público. O raciocínio é, então, simples: com 90 jogos em 52 dias, é fazer as contas de forma a encontrar um plano que satisfaça ao mesmo tempo a necessidade de as equipas descansarem 72 horas entre jogos, a fome dos telespectadores e a vontade das operadoras terem sempre carne fresca em cima do assador, distribuindo os jogos pelos dias todos. Certo? Eu diria que não.
É que, nestas coisas, um mais um nem sempre dá dois. Neste caso, temo que possa dar um. E podia dar três, se o esforço conjunto entre a Liga, os clubes e as operadoras televisivas os enviasse mais para os lados da criatividade em vez de os mandar ceder à tentação de esgotar a galinha dos ovos de ouro. Porque, subscrevendo eu em absoluto um tweet recente do meu colega João Pedro Cordeiro – quem acha os jogos piores porque não há público na bancada é porque não gosta verdadeiramente de futebol, que é o que se passa dentro das quatro linhas – também tenho a certeza de que o futebol como espetáculo televisivo piora sem ambiente a enriquecê-lo. E o período de retoma vai permitir-nos perceber que quem gosta mesmo de futebol – por oposição a quem gosta do seu clube e a quem gosta do ambiente alienante que os jogos proporcionam, por exemplo – é uma minoria ridícula. É o período em que a Liga, as operadoras e os clubes têm a obrigação de se juntarem e de imaginarem um produto criativo que suplante a ausência de cânticos, cor e “beauty shots” nas bancadas a fazerem de plano de corte.
Em Portugal, a grande discussão tem sido em torno da possibilidade de serem dados jogos em canal aberto aos telespectadores nesta retoma. Também eu acho que isso devia ser feito. Que já devia ser feito antes da Covid19 e do confinamento a que ela nos obrigou. Agora há por trás da “exigência” questões de segurança sanitária – seria uma forma de desencorajar os ajuntamentos nos cafés de quem não paga as mensalidades dos canais codificados – mas já antes isso teria sido inteligente, como forma de promoção de um produto que tem cada vez mais concorrência internacional e tecnológica. É por isso que acho que esta podia ser a altura ideal também para clubes, Liga e televisões repensarem o que querem. A contar pelos dedos, a decisão é simples: é dividir os 90 jogos pelos 52 dias, meter dois por dia, dar às TVs pagas um jogo por serão, aos espectadores que pagam a possibilidade de verem bola todas as noites e esperar que um mais um dê mesmo dois. Com um pouco de arrojo, a pensar fora da caixa, era inventar um produto novo, como por exemplo um simultâneo de parte dos jogos de uma jornada, metê-lo em canal aberto e embrulhá-lo num pacote que incluísse uma nova abordagem, mais aberta e que incluísse a presença dos protagonistas. Tudo de forma a que esse produto servisse de aperitivo e de promoção para os jogos que estariam em PayTV, a seguir, e que até podiam ser os dos grandes.
Quando eu era miúdo, a minha mãe e a minha avó estavam sempre a recomendar-me que não aceitasse rebuçados oferecidos por estranhos. Eu perguntava porquê e elas diziam-me que eles podiam ter metido lá droga – a droga era o maior terror dos pais e avós de crianças que cresceram após a abertura que o interior de Portugal viveu nos anos 70. Durante algum tempo aquilo fez-me confusão: então se a droga é cara, por que razão é que os estranhos haviam de a colocar de borla em rebuçados para oferecer aos miúdos da escola? Percebi depois que é criação de hábitos de consumo e que é a mesma razão pela qual as empresas que produzem os cereais alimentícios enchem aquilo de açúcar: viciam. A Liga, os clubes e as operadoras de TV podem achar que estão a alimentar o vício dos potenciais telespectadores colocando dois jogos por dia à subscrição durante quase dois meses. A mim, que gosto de futebol, mas também gosto de espetáculos vivos, atrativos, que me surpreendam, cheira-me que isso é banalizar o futebol para quem paga e mantê-lo inacessível a quem até o consumiria se tivesse dinheiro para o pagar.