João Félix foi eleito pela Marca para o “onze-desilusão” do que já se jogou da Liga espanhola, da mesma forma que se alguém se desse ao trabalho de fazer um exercício semelhante em Portugal, Raul de Tomás figuraria em todos os onzes-desilusão da nossa Liga. E, contudo, os dois continuam a ter boa reputação nos respetivos países: de acordo com os jornais, o que não falta são clubes espanhóis interessados em promover a recuperação do RDT, ao mesmo tempo que em Portugal Félix tem uma legião de apaniguados ferrenhos e críticos ferozes se calhar só semelhante à de Bruno de Carvalho, que nem preciso de jogar futebol para a possuir. Porquê? O mercado explica. E o futebol também.
É o mercado que molda as expectativas e, tal como chamou a atenção Rui Gomes da Silva, na campanha eleitoral permanente que é o seu blogue, o Benfica está hoje numa situação em que lhe “sobra dinheiro para comprar tudo e mais um par de botas”. Em Setembro, quando Félix ultrapassou pela primeira vez Cristiano Ronaldo na cotação do Transfermarkt – passou a ser cotado em 100 milhões de euros, face aos 90 do CR7 – eu já tinha chamado a atenção para a diferença entre o valor de mercado e o valor efetivo. É que o mercado valoriza aspetos como a idade, a margem de progressão, a duração do contrato, a predisposição para uma transferência futura ou a hipótese de o clube comprador vir a recuperar o dinheiro investido mais tarde. Quem achava que Félix, por ter sido comprado por 126 milhões de euros, ia chegar à Liga espanhola e assumir a carga decisiva que lá tinha, por exemplo, um Ronaldo maduro, estava a sonhar alto.
João Félix tem todo um percurso a fazer. Eu mantenho o que sempre disse: que já não via um adolescente de 19 anos com tanta qualidade em Portugal desde que Ronaldo apareceu e que, contudo, isso não significava que ele ia ser tão bom como foi Ronaldo aos 27, que em termos médios se considera a idade do auge. Para tal, Félix teria de ser tão forte e feliz como o CR7 numa série de fatores, como o grau de profissionalismo, o empenho, a blindagem psicológica e uma boa escolha dos clubes e dos treinadores. Ora Ronaldo teve nota 20 em todos estes aspetos, o que justifica que se tenha colocado no patamar mais elevado, o dos melhores do Mundo. Ronaldo foi sempre um fanático pela perfeição e apanhou Alex Ferguson e Carlos Queiroz na altura ideal, ao passo que Félix está num Atlético Madrid onde o cunho de Simeone leva a que se valorizem aspetos que não são os que ele mais corporiza, como a agressividade.
Além disso, Ronaldo teve a sorte – e o Sporting o azar… – de ser transferido para Old Trafford em baixa, que por esses tempos Jorge Mendes ainda não distribuía jogo como faz hoje. Isso reduziu-lhe o peso em cima dos ombros. Por alguma razão o defesa-central Domingos Duarte foi mencionado também pela Marca, mas no onze-revelação da Liga: é um jogador fiável, já justificou a chamada à seleção nacional e chegou ao Granada depois de três épocas seguidas emprestado pelo Sporting, ao Belenenses, ao GD Chaves e ao Deportivo da Corunha, da II Liga espanhola. Pelo baixo nível de expectativa que levava anexado a ele, Domingos Duarte ajuda a explicar o impasse em que estão Félix em Madrid, mas também Raul de Tomás no Benfica. É que o RDT chegou a Lisboa com o rótulo dos 20 milhões de euros bem à vista e dele passou a esperar-se que fosse o Ronaldo da Luz. Ora ele não reagiu da melhor forma a essa pressão psicológica.
Será que ele os valia? Tenho dúvidas, mas também aí é o mercado a ditar leis – há um preço a pagar pela inflação a que foi sujeito o passe de João Félix e ele estipula que a seguir tem de se comprar em alta também, seja por novo-riquismo ou por necessidade de satisfazer a clientela. A questão que mais interessa neste momento, porém, é: será que ele alguma vez os justificará? Pode ser que com a chegada de Weigl e, eventualmente, Bruno Guimarães, ambos com o mesmo rótulo de 20 milhões a luzir na camisola, de Tomás sacuda a pressão dos ombros e comece a render aquilo que ainda não mostrou em Lisboa. Ainda assim, o que já vi dele recomenda mais a sua inclusão num 4x2x3x1 de matriz espanhola, onde ele possa jogar sozinho na frente, como fazia no Rayo Vallecano, por exemplo. As caraterísticas que o futebol português impõe a uma equipa como o Benfica – muita gente na área… – não estão a casar bem com o futebol de De Tomás, que é mais o cowboy solitário de uma equipa que jogue mais recolhida atrás. E isso, tal como a inadequação de Félix ao futebol de Simeone, pode complicar as coisas.