Fez-se história no jogo entre GD Fontinhas e CF Estrela do passado fim de semana, na jornada de abertura do Campeonato de Portugal. Foi, em Portugal, a primeira partida oficial com público no estádio após a pandemia de Covid-19 aparecer nas nossas vidas. Em plena Praia da Vitória, na Ilha Terceira açoriana, 210 adeptos pintaram as bancadas, naquele que é considerado pelos intervenientes como o primeiro passo para um regresso gradual de espetadores aos campos de futebol. Nos dias que antecederam o encontro, assim como nos balneários e no relvado, a ansiedade fez-se sentir, mas cedo foi abafada pelos cânticos açorianos e de poucos, mas barulhentos, apaixonados pelo histórico da Amadora. A decisão de permitir a presença de adeptos neste jogo, contudo, gerou controvérsia, com críticas vindas de Pedro Proença, que se queixou de uma diferença de tratamento em relação ao Santa Clara.
Ora bem, este primeiro passo foi dado com base na decisão do Governo Regional dos Açores em permitir que os estádios do arquipélago tenham até 10 por cento da lotação de público nas bancadas. Todos menos o Estádio de São Miguel, do Santa Clara, que foi informado do dever de cumprir as indicações dadas pela Direção-Geral da Saúde para o principal escalão. Pedro Proença deu a conhecer as suas críticas em relação a esta situação. “Aquilo que se passou este fim de semana nos Açores é absolutamente inacreditável. Tivemos um campeonato de competições não-profissionais onde foi dado acesso ao público e, na mesma ilha, o Santa Clara não pode ter público nas competições profissionais. Isto só poderá ter sido um lapso”, referiu o presidente da Liga Portugal à TVI 24. No entanto, é necessário salientar que o Campeonato de Portugal está sob a esfera da Federação Portuguesa de Futebol, não da Liga Portugal, e que o Santa Clara joga na ilha de São Miguel (tem 45 casos ativos de Covid-19 no momento) e o Fontinhas na Terceira (nove casos ativos).
A partida terminou com o triunfo do Estrela por 2-1 (Bruno Mendonça marcou para os açorianos; Yuran Fernandes e Ronald Murillo para o conjunto da Amadora), mas ainda assim o assunto de maior destaque foi mesmo a presença de adeptos. Por isso mesmo, era grande o simbolismo que rodeava o jogo, tal como nos contou Francisco Agatão, antigo médio de I Divisão, por exemplo no Boavista e no Estrela da Amadora, e agora treinador do Fontinhas. “O ambiente estava excelente, próprio de um jogo antes da pandemia. No dia a dia notou-se uma ansiedade crescente, não só por o clube ser o responsável pela organização do jogo, mas também por sabermos que os olhares estavam todos sobre nós e nada podia correr mal, para além claro, das saudades que todos tínhamos do futebol e de ter público assistir. Felizmente foram cumpridas todas as regras emanadas pela DRS e o público teve um comportamento ordeiro e disciplinado. Em boa verdade todos estávamos ansiosos, não só por ser o primeiro jogo do campeonato bem como ser o único em Portugal com público a assistir. Todos estamos de acordo que com público o futebol tem mais encanto”, disse-nos o técnico.
Do banco de suplentes para as bancadas, eram seis os corajosos com as cores do Estrela no Estádio Municipal da Praia da Vitória. Poucos, sim, mas o barulho que fizeram não mostrava isso, muito pelo contrário, como nos descreveu Ângelo Ventura. A viver nos Açores, Ângelo é adepto para a vida do Estrela, depois de ter crescido na cidade da Amadora, e aproveitou esta ocasião para se juntar aos cinco outros sócios que viajaram até à Terceira para ver a partida. “O ambiente no estádio foi muito bom. Os adeptos do Fontinhas faziam muito barulho, mas os seis do Estrela também não se calaram. Os jogadores estavam mesmo contentes por terem o apoio do público, ainda mais os do Estrela por verem poucos, mas bons adeptos sempre a puxar por eles”, começou por referir Ângelo. Quanto às medidas de segurança, essas foram “as adequadas, com todos a usarem máscara e a manter a distância designada”.


Em pleno relvado, os jogadores sentiram ao pormenor as saudades que estes adeptos já tinham de ver a bola a rolar. “Um grande ambiente, dava para sentir a presença dos adeptos, a claque a fazer barulho, mesmo com o número reduzido, foi muito positivo a presença deles. Todos nós estamos ansiosos para o regresso dos jogos e principalmente com os adeptos, a saber de tudo que se passava em volta. Foi um dia especial e nos dias anteriores ao jogo não se falava de outra coisa”, apontou-nos Rafa Santos, guarda-redes do Fontinhas.
Do lado do Estrela, o capitão Filipe Leão descreveu aquilo que considera ser um elemento fundamental para que o futebol seja o espetáculo que todos os apaixonados do desporto rei conhecem. “Estava um bom ambiente com sensivelmente 200 pessoas. Não se calaram durante o jogo, já estavam com saudades, de certeza, de voltar a um estádio e ver o espetáculo que o futebol representa. Para nós jogadores, ter público é maravilhoso, não faz sentido não termos público para nos apoiar. O futebol é um espetáculo e um espetáculo é para o público ver”, frisou o guarda-redes.
Também Josymar Stehb, avançado do Fontinhas, testemunhou esse entusiasmo em torno deste encontro. “O ambiente estava espetacular, deu para sentir que as pessoas já estavam a precisar de estar dentro de um estádio de futebol. No dia a dia não se falava de mais nada a não ser do jogo contra o Estrela, estava tudo virado para esse jogo. Pena que não houve mais bilhetes porque muitas mais pessoas queriam e gostariam de estar presentes nas bancadas, as pessoas já precisavam mesmo disso.”
Motivação, ansiedade e segurança
Entre motivação, ansiedade e alguma contenção para respeitar as medidas de segurança, os jogadores viveram recheados de emoções este regresso do futebol e dos adeptos. “Foi muito bom, ainda por cima ser o primeiro jogo em Portugal após o Covid a ter público nas bancadas. Estava um bocado ansioso também por ser o primeiro jogo do campeonato, pois estivemos sem competir durante algum tempo. Nos balneários foi um bocado esquisito porque tivemos de estar sempre de máscara, não nos podíamos cumprimentar como gostamos, mas correu tudo bem”, contou Josymar. Já Rafa Santos lamentou o resultado, mas ainda assim fez um balanço positivo deste dia. “Foi muito gratificante. É um privilégio regressar desta maneira, senti uma motivação maior, principalmente poder contar com apoio do povo da freguesia, que tudo faz para nos sentirmos em casa desde sempre. Senti a mesma vibração positiva dos meus colegas e de toda estrutura. O resultado não foi o esperado, mas isso é o futebol.”
Visto que o Estrela ainda não pode contar com adeptos no próprio estádio, vai sentir pela primeira vez na pele já na próxima jornada o que é jogar para um estádio vazio de adeptos. “Foi bom voltar a jogar passados uns bons meses, mas neste campeonato nunca jogamos sem público até à data. Foi o primeiro jogo oficial desde a interrupção devido à pandemia e por isso não sentimos diferença. Na próxima jornada já não vamos ter público e aí vamos sentir a falta deles”, reconheceu Filipe Leão. O Estrela também joga nos Açores neste fim de semana para a Taça de Portugal diante do São Roque, em Ponta Delgada. No que toca ao Campeonato de Portugal, irá receber o SC Ideal a 4 de outubro.
Acima de tudo, pode considerar-se esta decisão das autoridades de saúde dos Açores como um teste piloto à fiabilidade da presença de adeptos nos estádios em tempos de pandemia. Um ‘exame’ que foi passado com distinção, nas palavras de todos aqueles com quem estivemos à conversa. “Foi uma decisão ponderada pela DRS com base nos poucos casos de Covid que se verificam na Ilha Terceira e também, presumo eu, que foi um teste para se perceber até que ponto seria possível ter de novo gente nas bancadas. O resultado foi excelente e foi dada uma demonstração inequívoca de civismo e respeito pelas regras de segurança. Por conseguinte considero que foi uma decisão correta”, referiu o treinador Francisco Agatão, que vê este como o primeiro passo para o retorno aos poucos do público às bancadas. “Dado o comportamento altamente responsável do público, foi dado um passo para que se possa abrir as portas dos estádios, com as devidas condicionantes e respeitando sempre as regras de segurança impostas pela DGS.”
Assim pensa também Josymar. Através daquilo que presenciou nos balneários e nas bancadas, o avançado não vê motivos para que não se possa começar a fazer o mesmo noutros estádios do país. Isto, claro, com as devidas regulamentações e um limite de lotação, tal como aconteceu no passado domingo na Praia da Vitória. “Foi uma decisão acertada visto que todas as pessoas que estiveram tanto dentro dos balneários, como as pessoas nas bancadas, tomaram os devidos cuidados e cumpriram na íntegra aquilo que lhes foi pedido, tanto a nível dos distanciamentos recomendados como o uso obrigatório de máscaras. Se em todos os estádios do país as pessoas se comportarem da mesma forma do domingo passado, não vejo o porquê de não haver um número específico de pessoas nas bancadas dos estádios de futebol em Portugal”, disse-nos o jogador do Fontinhas. “Todos deviam olhar para o que aconteceu no domingo passado no Estádio Municipal da Praia da Vitória como um exemplo a seguir, porque só assim voltaremos aos poucos à normalidade. Gostaria de dar os parabéns a todos pelo trabalho que foi conseguido, só assim conseguimos ter gente no estádio, é a nossa realidade neste momento, por isso não podemos facilitar”, acrescentou Josymar.


A jogar fora de portas, os jogadores do Estrela não sentiram qualquer perigo para a própria saúde, nem para aqueles que estavam nas bancadas, visto que as regras de segurança estavam todas a ser levadas a sério. “Não vi perigo nenhum de ter adeptos no estádio. Os adeptos cumpriram à letra com o distanciamento social e com as máscaras. Espero sim que sirva de exemplo para começar a ter público no futebol”, destacou Filipe Leão, nas palavras do qual “o futebol sem público fica mais pobre”.
O facto de o número de casos positivos de Covid-19 na ilha Terceira ser baixo foi um fator chave para influenciar também a decisão de permitir adeptos, conforme apontou Rafa Santos. “Aqui na ilha Terceira a situação está bem mais controlada do que no continente, serviu como um teste para o que vem no futuro e felizmente correu tudo bem. Todos respeitaram as indicações, tanto os atletas e a estrutura das duas equipas, árbitros e os adeptos. Assim, acredito que foi o primeiro passo positivo para o futuro.”
Para os adeptos, só a mera possibilidade de poderem voltar a ver um jogo no estádio é uma lufada de ar fresco em tempos onde o que era normal outrora é agora uma raridade. “Eu como adepto adorei o regresso de um jogo ao vivo e delirei com a vitória do clube da cidade que me viu crescer. Acho que foi dado um passo para o regresso gradual de público aos estádios, até porque no fim de contas são os adeptos que dão vida e sentido ao próprio jogo”, salientou Ângelo Ventura, adepto do Estrela.
Apesar de ainda não haver confirmação oficial, os protagonistas do Fontinhas acreditam que a receção ao SC Ideal, a 18 de outubro, da terceira jornada do Campeonato de Portugal (os açorianos jogam em casa da equipa B do Belenenses SAD neste fim de semana), poderá contar novamente com público nas bancadas, também devido às boas indicações deixadas no duelo com o Estrela.
No entanto, a nível nacional prevê-se que o regresso dos adeptos está distante, até pelas palavras mais recentes de António Lacerda Sales, Secretário de Estado adjunto da Saúde. “É evidente que não podemos dar sinais contrários à evolução epidemiológica e ao estado de contingência do país. Seria mau que quem quer que seja tentasse dar indicadores contrários à evolução da pandemia. Se a evolução epidemiológica for negativa, se continuar a haver crescimento de casos, é muito provável que isso venha a acontecer [estádios continuarem sem público]”, referiu à SIC Notícias, na quarta-feira. “O comportamento no futebol é de grandes emoções e paixões e sabemos que diferentes níveis de atividade da cultura têm comportamentos diferentes por parte das pessoas. Os adeptos portugueses sabem comportar-se, são disciplinados e têm consciência cívica. Quando for a altura certa, e não sabemos quando será, abriremos os estádios. Para já, com estes números e com a tendência crescente, não é previsível que tal aconteça”, acrescentou. Até lá, os Açores (e nem todo o arquipélago) ficam com o privilégio pelo qual muitos anseiam cada vez mais.
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