Há muitas formas de abordar a confusão a que o SC Braga chamou “teatro de marionetas” a propósito do caso Guilherme Schettine, cada uma mais interessante do que a outra. Os que se focam mais nas teorias da conspiração preferirão centrar-se na indiscutivelmente nefasta influência do Benfica, baseada em relações de poder como as que só o dinheiro consegue comprar. Os mais legalistas olharão mais a forma regulamentar de travar essa influência, esquecendo que o engenho e a arte humanos conseguem contornar qualquer regra. Haverá também quem se foque na raridade que é um jogador dizer não a um clube que se não é ainda hegemónico para lá caminha a passos largos, mas a mim, que nas relações de poder me interessa muito mais o equilíbrio estratégico, o que mais me intriga são as motivações de António Salvador. O que mais me interessa é entender se o presidente do SC Braga acha que chegou a hora de dar o passo em frente. Ele lá saberá para onde.
Vamos por partes. Que o futebol português é um “tetro de marionetas” não terá sido preciso o caso Guilherme Schettine para o dar a entender (que prová-lo é outra coisa bem diferente). Há décadas que os principais clubes lutam para aumentar as esferas de influência, colocando treinadores “amigos” aqui e mantendo sob contrato jogadores de que não precisam e de que provavelmente nunca vão precisar para poderem metê-los sob empréstimo acolá. Até eu, que acredito na seriedade de 99% das pessoas, incluindo jogadores, treinadores e até árbitros ou jornalistas, esses malandros, vejo nesta realidade um obstáculo sério ao decurso saudável da competição. No que divirjo da maioria é na forma de o combater. Sim, é urgente legislar, tal como a Liga fez relativamente à limitação dos empréstimos. Acho mesmo – e já o escrevi – que é preciso ir mais longe. Mas não chega, nunca chegará, pois já percebemos que qualquer abordagem legal é contornável.
O que é preciso é atacar a fundo as razões profundas que permitem a uns manipular os fios das marionetas e levam os outros a ficar de mãos e pés amarrados. E essas têm a ver apenas com uma coisa: dinheiro. Têm a ver com a distribuição de riqueza, com a inexistência de um mercado interno que não passe pelos três – talvez quatro ou cinco, se o SC Braga ou o Vitória SC, que têm público em números consideráveis, o quiserem – de sempre. Têm a ver, a nível interno, com receitas de TV, e a nível internacional, com a forma como a UEFA favorece estes fenómenos hegemónicos, separando financeiramente os clubes-Champions dos outros. Este não é um fenómeno exclusivamente português: nos países de segunda linha europeia, os que costumam meter uma equipa na Liga dos Campeões, há casos de clubes que contratam tudo o que mexe, quanto mais não seja para que não haja o risco de um jogador interessante que seja acabe por se comprometer com um rival. E nisto a mão negra da UEFA é absolutamente evidente.
A novidade no caso-Schettine é, para mim, a posição de António Salvador. Salvador é uma personagem muito interessante, das mais interessantes no século XXI do futebol português. Dele se diz há muito tempo que é portista de coração e que ambiciona até substituir Pinto da Costa, quando este vir chegar ao fim o seu “reinado” no Dragão. Dele se sabe que é amigo e parceiro de negócios de longa data de Luís Filipe Vieira – e não foi apenas nas obras ou no imobiliário que os dois estiveram lado a lado, como se percebe pelo fluxo permanente de jogadores entre Braga e a Luz. Indiscutíveis são ainda mais duas coisas: que o homem está a fazer um trabalho notável em Braga, colocando o clube ao nível dos três primeiros com uma assiduidade impressionante, e que é incrivelmente difícil de aturar pelos treinadores que contrata e despede a um ritmo ainda mais regular. O que falta perceber é o que ele quer a seguir. Porque já vimos Salvador mais encostado ao FC Porto, ao Benfica ou até a entrar na esfera de influência do Sporting – provavelmente porque terá percebido que era o rival mais próximo, que convinha enfraquecer, para subir a corda a pulso – mas nunca tínhamos visto um Salvador a assumir tão frontal e abertamente o confronto com o poder.
Ora, para mim, mais interessante do que discutir se o Benfica manipulou o Santa Clara no caso Schettine – porque dou de barato que essas coisas acontecem e, pior, que podem fazer-se contornando a lei, tornando-as legais mesmo quando não são morais – é mesmo entender para onde se move Salvador. Se pode ser ele, sentado no cadeirão da quarta força, a dar ao futebol nacional as condições de regeneração e competitividade de que este tanto precisa ou se o objetivo estratégico do presidente do SC Braga é outro e se ficará, também ele, preso a jogos de poder cuja motivação é bem mais egoísta.