Quando Ryan Gauld chegou a Portugal, chamavam-lhe “Mini-Messi”. O escocês passou por vários empréstimos, não conseguiu afirmar-se no Sporting, mas é hoje o maestro do Farense na caminhada que o clube algarvio empreendeu até à Liga Portuguesa. A atravessar a época mais goleadora da carreira, aos 24 anos, o médio tem sido o principal destaque do segundo escalão, havendo mesmo quem considere que é mesmo o melhor jogador da competição, com um talento que vai muito além do que se vê por lá. As qualidades dentro do relvado já lhe eram reconhecidas, mas tem juntado a elas uma ética de trabalho e uma personalidade que fazem com que seja já um dos capitães do clube algarvio.
Com seis remates certeiros nos três jogos mais recentes pelo Farense (hat-trick contra o Académico de Viseu, bis diante do Vilafranquense e um golo frente ao Leixões), antes da paragem do futebol, Gauld já ultrapassou a que era a sua temporada mais goleadora na carreira. Em 2013/14, antes de rumar ao Sporting, o médio ofensivo apontou oito golos em 39 partidas ao serviço do Dundee United. Foi com base nessa temporada que os leões avançaram para a sua contratação, por 2,75 milhões de euros. Avançamos até 2019/20 e Gauld já soma nove tentos marcados em 24 compromissos com a camisola do Farense.
Foi, no entanto, a capacidade técnica e de drible, assim como exibições estonteantes, que valeram a Gauld a comparação com Messi, quando tinha ainda 18 anos, idade com a qual chegou ao Sporting. Um fator em específico contribuiu ainda mais para isso. “Aquilo em que ele se assemelha mais a Messi é a capacidade de decisão que tem, muito difícil de encontrar num jogador da Segunda Liga. Tecnicamente, é capaz de colocar a bola onde quer e junta-lhe intensidade”, destacou Rui Duarte, treinador que orientou Gauld no Farense durante a primeira metade da época passada, quando o médio esteve cedido pelos leões aos algarvios. Ainda assim, “essa comparação [com Messi] pode ter criado certas expetativas que não foram cumpridas”, considera o técnico.
Os anos de retrocessos
A verdade é que para chegar a 2019/20 Gauld teve de vivenciar muitos retrocessos na carreira. Era muito o potencial que lhe reconheciam no país de origem quando deu o salto para o futebol português, tal como nos contou Barry Anderson, jornalista no ‘The Scotsman’ e no ‘Edinburgh News’. “Lembro-me do Gauld a aparecer na equipa principal do Dundee United, vindo das camadas jovens, em 2012”, começou por referir.
No entanto, foi um encontro em específico dos Sub-21 escoceses que lhe ficou na memória. “Cobri um jogo na Irlanda do Norte, em setembro de 2015, no qual ele esteve excecional. A história do dia foi sobre três Ryan’s – Fraser, Christie e Gauld. Todos estiveram fantásticos no meio-campo ofensivo do 4x2x3x1 escocês. Os outros dois marcaram e o Gauld dançou pela defesa adversária com facilidade. O controlo de bola e visão de jogo que mostrava eram uma alegria para os olhos. Parecia uma certeza que os três iriam avançar com naturalidade para a seleção principal. Até agora, o Fraser e o Christie estão estabelecidos na equipa, enquanto o Gauld ainda não tem internacionalizações”, assinalou o jornalista.
Quando chegou ao Sporting, em 2014, Gauld foi colocado na equipa B e assumiu desde logo papel de indiscutível no conjunto então orientado por Francisco Barão. Nessa primeira temporada ainda foi promovido ao plantel principal por Marco Silva e foi a jogo por duas ocasiões na Liga Portuguesa, sendo ainda titular em três embates para a Taça da Liga. Em sentido inverso, na campanha seguinte não fez parte das contas de Jorge Jesus e não somou minutos na equipa A, com cinco golos em 38 encontros pela turma secundária leonina.

Na primeira metade de 2016/17 teve a primeira cedência, ao Vitória FC, por quem fez dez partidas antes de ser chamado de regresso, em janeiro. Contudo, voltou a não passar de Alcochete. “Teve alguns retrocessos que levaram a que não conseguisse afirmar-se no Sporting. Lembro-me de quando esteve cedido ao Vitória FC, com o José Couceiro. Nessa altura esteve a um nível muito bom, mas voltou ao Sporting e teve mais um retrocesso”, recordou Rui Duarte.
Em 2017/18 disputou 23 partidas pelo CD Aves no principal escalão. Na temporada passada, esteve desde o verão até janeiro no Farense, então cedido, processo complicado e que durou alguns meses, nas palavras de Rui Duarte. “O presidente [João Rodrigues] teve muito mérito em conseguir convencê-lo. Acredito que na cabeça dele não tenha sido fácil aceitar logo ir para um clube acabado de subir à Segunda Liga. Foram mesmo cerca de dois meses a tentar até conseguir. O Farense também é um clube que recebe bem os jogadores”, referiu o ex-timoneiro dos algarvios.
Chegar, treinar e impor-se
Esta tem sido a época de confirmação de Gauld, mas o médio já tinha tido um test-drive no Farense. E foi, de facto, uma prova dada pelo escocês que chegou ao São Luís sem rotação de jogo e até mesmo com a capacidade física em baixo. “Quando chegou senti que tinha uma grande vontade de jogar e treinar. Até porque estava já numa fase em que treinava à parte do plantel do Sporting, ele mesmo disse que fazia sessões de meia-hora por dia”, confidenciou-nos Rui Duarte.
Ainda assim, foi nesse momento que falou mais alto uma característica que poucos reconhecem no talentoso jogador: o índice de trabalho. Isto pois muitos dos jogadores com os atributos de Gauld acabam por ser menos intensos no processo defensivo, assim como nas sessões de treino. Não foi isso que o médio fez e mesmo por esse foco é que foi titular nos 12 compromissos que realizou na Segunda Liga na época passada.

“Percebemos que tinha uma grande capacidade de trabalho. Era extremamente importante a nível defensivo, sendo dos primeiros a defender em zonas mais atacantes. Tem espírito de entrega e capacidade de sofrimento: em apenas duas semanas conseguiu igualar o nível dos restantes colegas”, revelou Rui Duarte. Assim sendo, o treinador não se surpreende pelo facto de Gauld ser hoje um dos homens que ergue a braçadeira nos Leões de Faro. “É um homem com muito caráter, humilde e sempre disponível para ajudar. Não estranho que já tenha sido capitão quando o Fabrício não pode jogar.”
O sol português contra o frio escocês
Uma primeira metade de 2018/19 a um bom nível no recém-promovido ao segundo escalão Farense despertou a atenção no país de origem. Em janeiro, o Sporting cedeu o médio ao Hibernian, muito por vontade do próprio jogador. “Senti que era a altura certa para voltar à Escócia e foi a primeira vez que senti isso desde que saí. O Hibs encaixa mesmo na forma como gosto de jogar. Aprendi imenso, tanto no relvado, como fora, nos últimos anos. Acho que evoluí, acima de tudo, em termos táticos. Em Portugal dão muita ênfase a esse aspeto”, disse Gauld quando foi apresentado no clube.
Porém, quando tudo parecia estar destinado a que fosse no país de origem que viesse a dar o salto, surgiu outro retrocesso, desta feita em forma de lesão. Uma lesão na coxa, que conheceu vários episódios e obstáculos quando aparentava estar pronto para voltar à competição fez com que fosse devolvido ao Sporting em maio do ano passado, com apenas seis partidas realizadas pelo Hibs, quatro delas com o estatuto de titular.

“Um talento inquestionável que criou laços com o clube, mas a sua passagem pela Escócia ficou limitada pela lesão que sofreu na coxa depois de um arranque impressionante na equipa de verde e branco. Ficou a sensação de que podia ter sido bem melhor se não tivesse sido forçado a parar.” Foram estas as palavras com que o Hibernian se despediu de Gauld no site oficial do clube.
Essa passagem pouco conseguida pelo Hibs levou mesmo a uma maior descrença em relação a Gauld, até mesmo ao esquecimento. “O Ryan tornou-se ligeiramente esquecido na Escócia desde que foi para Portugal, mas é sem dúvida um dos jogadores escoceses mais talentosos da geração dele. Jogar no segundo escalão de outro país não o ajudou, nem a cedência ao Hibs”, referiu Barry Anderson. Mesmo assim, há esperança em solo escocês no médio. “Ainda há muito tempo de sobra na carreira para ele regressar a um nível de topo e cumprir o potencial inquestionável que tem.”
A Segunda Liga é pouco
Foi no último verão que Gauld deu um passo importante (e que pode revelar-se como o mais decisivo…) na carreira. O médio de 24 anos voltou a Faro, agora a título definitivo, e está a colher frutos este regresso a uma casa que já conhecia. O escocês tem sido o porta-estandarte da campanha do Farense rumo ao principal escalão, que levou os algarvios a estarem neste momento na segunda posição, a dois pontos de distância do líder, o Nacional, e com seis de avanço para o terceiro classificado, o Feirense.
Os números de Gauld nesta época não enganam: nove golos e cinco assistências em 25 partidas, alguns desses remates certeiros de levantar o estádio e exibicões de encher as medidas aos adeptos. Será que é altura de dar o passo rumo a voos mais altos? Quem já o treinou acredita que sim e que o segundo escalão é pequeno demais para o talento dele.
“É um jogador acima da média, de primeiro escalão. Não tenho grandes dúvidas em dizer que é o melhor da Segunda Liga. A temporada que está a realizar não me surpreende em nada. Ele tem muita chegada à área, quando está bem física e psicologicamente coloca muita intensidade no jogo e depois transforma a presença em zonas mais ofensivas em golos, fruto da capacidade de decisão de que é dotado”, salientou Rui Duarte.
Com tudo o que passa pelo mundo fora neste momento e que levou à paragem dos campeonatos de futebol, não se sabe como vai ser o desfecho desta temporada. No entanto, há algo que parece ser uma certeza: Gauld estará numa liga principal de nível na Europa, seja com a camisola do Farense ou outra, seja em Portugal ou no estrangeiro. O “Mini-Messi” já lá vai, agora é o tempo de Ryan Gauld.
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