Nunca houve tanto Minho na I Liga como em 2019/20. A região está a tomar de assalto o futebol português: esta época já serão cinco as equipas da Associação de Futebol de Braga que competem no principal escalão. SC Braga, Vitória SC e Moreirense vêm de uma temporada na qual se destacaram como os primeiros da tabela logo a seguir aos três grandes. A eles juntam-se o FC Famalicão, potenciado por um investimento a dar que falar, e o Gil Vicente, após um processo que culminou no regresso de um histórico a suspirar por acordar de um sono profundo. Cinco clubes com objetivos distintos, mas com o selo da alma minhota dentro das quatro linhas.
A supremacia de equipas do norte de Portugal na I Liga não é novidade para o adepto mais atento. A Associação de Futebol do Porto conta também com cinco conjuntos na elite nacional. FC Porto, Rio Ave, Boavista, CD Aves e o recém-promovido FC Paços de Ferreira são os representantes da região. O CD Tondela aumenta para onze o total de equipas do Norte na competição. Depois, há Benfica, Sporting e Belenenses SAD, todos da capital, Lisboa. Mais abaixo no mapa, surgem o Vitória FC e o Portimonense como representantes de regiões com pouca presença atual na I Liga. O Marítimo, da Madeira, e o Santa Clara, dos Açores, completam o lote de 18 clubes que hoje começam a disputar o campeonato.
Quem já sentiu de perto a força do futebol no Minho não se surpreende com esta presença nortenha no principal escalão. “A região Norte sempre esteve em maioria no futebol em Portugal”, salienta Virgílio. Este antigo defesa e médio, agora com 61 anos, esteve sobretudo ligado ao Sporting, mas integrou a equipa do FC Famalicão que marcou presença pela segunda vez no principal escalão, em 1978/79.
A paixão e as finanças como alicerces para o orgulho
Qual é, então, a razão pela qual se verifica este domínio do Norte? Virgílio deu a resposta, virada para o que toca ao Minho. “Dois fatores parecem-me decisivos para essa predominância de clubes do Norte, em particular da região minhota. Em primeiro lugar, a capacidade financeira está muito acima da realidade no Centro e Sul do país. Em segundo lugar, a enorme paixão que as pessoas têm pelo futebol”, considera Virgílio, que dá ainda dois exemplos. “Famalicão e Braga são notáveis nessa paixão”, diz-nos. A verdade é que essas foram duas cidades pelas quais passou na carreira, que terminou com a camisola dos arsenalistas.


Quem também jogou no FC Famalicão foi José Eduardo, agora comentador desportivo, um minhoto de gema que se orgulha sem fim da forte presença da região na I Liga. “Enquanto minhoto, regozijo-me pela presença dos cinco clubes na montra do nosso futebol”, realça-nos o ex-jogador, que foi campeão por duas vezes ao serviço do Sporting. Não obstante o facto de ter estado apenas durante uma temporada na equipa famalicense, José Eduardo recorda com emoção o sentimento por lá vivenciado. “Adorei jogar no FC Famalicão. Senti-me em casa. Guardo no coração a simpatia, o entusiasmo, a humildade, o arreganho das suas gentes”, reconhece.
Já que a conversa é de sentimento, é com orgulho que a Associação de Futebol de Braga se vê representada por cinco equipas na Primeira Liga. “Esta situação resulta da afirmação e organização estrutural dos clubes da AF Braga. Para nós, é um motivo de orgulho e prestígio”, refere Manuel Machado, presidente da direção do organismo, que atribui o “mérito inteiramente aos clubes que conseguiram alcançar os objetivos. Esta presença tem um impacto desportivo extraordinário e económico muito grande também, principalmente devido à proximidade dos clubes.”
Atmosfera “fantástica” para uns… e normal para outros
Há quem guarde com muita intensidade as memórias do ambiente vivido em torno do futebol no Minho, assim como também existem aqueles que consideram não ser assim tão diferente do que acontece noutros pontos do país. Virgílio recorda as temporadas em Famalicão, fomentadas por uma “atmosfera fantástica”. “As pessoas da cidade e dos arredores adoram futebol e o clube. Mesmo na II Divisão esse ambiente está sempre presente, até nos jogos fora”, diz-nos. Pois bem, o Estádio Municipal 22 de Junho, em Vila Nova de Famalicão, com lotação esgotada, foi uma das imagens de marca da equipa na época passada. Em 2019/20, aquele povo volta a sentir o ‘calor’ dos grandes jogos.
Tito Santos, por seu turno, ficou para toda a vida marcado por aquilo que experienciou no Minho durante a carreira. Tanto que ainda vive em Guimarães. Depois de aparecer no Atlético, de Alcântara, em Lisboa, passou pelo Vitória SC entre 1971 e 1978, fez uma temporada no FC Famalicão e por isso está à vontade para considerar que “há mais clubismo nesta região”. “É um povo muito aguerrido e diferente. Vive-se mais o futebol no Minho e no Norte, à parte de Benfica e Sporting”, considera. É para as gentes da cidade berço que Tito tem mais elogios. “O povo de Guimarães é muito apaixonado pelo futebol. Tirando os três grandes, o Vitória SC é a equipa que leva mais adeptos ao futebol em Portugal”, destaca.


Noutra perspetiva, José Eduardo considera que “não há diferenças substanciais na forma como os adeptos vivem o futebol” por terras minhotas, quando comparado com Portugal na generalidade. Ainda assim, o ex-futebolista enaltece que “a proximidade dos clubes incentiva a rivalidade, que é uma vitamina essencial do futebol”. Essa mesma situação está inerente quando se fala de SC Braga e Vitória SC, os dois clubes que surgem logo a seguir aos três grandes em termos de patamar. Na temporada passada, assistiu-se a um Moreirense a tentar intrometer-se nessa luta e a gladiar com os vitorianos pela quinta posição da tabela. Com as adições de FC Famalicão e Gil Vicente, juntam-se duas equipas a esta luta entre ‘vizinhos’.
O regresso esperado e uma sociedade das nações
Cinco equipas, cada uma com objetivos próprios, mas todas com a ambição como principal chama para a nova temporada. A começar pelas caras recentes, a época 2019/20 marca o regresso do Gil Vicente ao principal escalão, um ‘renascimento’ similar ao que o Boavista experimentou há uns anos. Uma questão: será que os gilistas vão conseguir repetir o trajeto dos axadrezados e manter-se na I Liga depois de tantos anos afastados dos grandes palcos? O primeiro passo dado nesse sentido foi a contratação de um treinador experiente. Vítor Oliveira está habituado às lides de subida na II Liga, mas desta vez assumiu as funções de timoneiro do projeto de permanência da equipa de Barcelos.


Muitos são aqueles que se alegram com o retorno do Gil Vicente à Primeira Liga. José Eduardo é um deles, apesar de nunca ter vestido a camisola gilista na carreira. “Realço o Gil Vicente, que ao fim de 13 anos obrigou a corrigir uma tremenda injustiça”, realçou. Ora, fala-se aqui, claro está, do “caso Mateus”, que tinha atirado o clube para fora do principal escalão. “Esse feito só foi possível porque um exemplar minhoto – António Fiúza – nunca desistiu. Espero que as entidades regionais – e não só – arranjem formas de enaltecer a tenacidade heróica da luta por um ideal”, defende José Eduardo.
Em Vila Nova de Famalicão vive o vice-campeão da II Liga, que aposta na estreia de João Pedro Sousa como treinador principal ao mais alto nível. O técnico bebeu da ‘sabedoria’ de Marco Silva, enquanto adjunto, nas épocas mais recentes, e está ao leme de um conjunto que tem aproveitado como poucos o mercado de transferências para mexer. O Famalicão apresenta-se em 2019/20 como uma autêntica sociedade das nações, com um plantel composto por portugueses, brasileiros, espanhóis, um sul-africano, um uruguaio, um ganês, um maliano, um argentino e um inglês. Diogo Gonçalves, Fábio Martins e Guga Rodrigues foram algumas das contratações sonantes.
A garra de Sá, confirmação para Vieira e afirmação para Campelos
Em Braga, a casa abanou e foi preciso mexer. A saída de Abel Ferreira, em quem António Salvador tinha demonstrado confiança para continuar, levou Sá Pinto para a Pedreira. Após experiências na Polónia, Bélgica, Grécia e Arábia Saudita, Sá Pinto está de regresso ao futebol português, depois de ter orientado o Belenenses em 2015/16. O treinador mantém o estilo aguerrido bem reconhecido pelos demais, o mesmo que espelhava dentro das quatro linhas enquanto jogador, mas são muitas as incógnitas em torno do que esperar dos arsenalistas nesta época. Saiu Dyego Sousa, voltaram Hassan, André Horta e Eduardo, tendo ainda sido contratados Diogo Viana e Tormena. Será temporada de passos em frente no sonho do título, ou para continuar com o desígnio de quarta força?
No castelo, também houve troca de treinador. Luís Castro rumou ao Shakhtar Donetsk e abriu as portas a Ivo Vieira, que levou o Moreirense à melhor época na história do clube em 2018/19. Os dados até agora são positivos. O Vitória SC já ultrapassou a segunda pré-eliminatória da Liga Europa, com um agregado de 5-0 perante os luxemburgueses do Jeunesse Esch. Segue-se o Ventspils na caminhada europeia. Com a qualificação europeia como primordial objetivo a ser um dado já adquirido, resta saber se Ivo Vieira confirma as capacidades que mostrou na época passada.


Em Moreira de Cónegos, há quem procure a afirmação antes da confirmação. Trata-se de Luís Campelos, substituto de Ivo Vieira no comando técnico do Moreirense. Com várias temporadas ao leme da equipa B do Vitória SC, o treinador prepara-se para a tarefa sempre complicada de suceder a um trajeto como foi o dos cónegos em 2018/19. Saíram peças chave como Chiquinho, Ivanildo Fernandes, Heriberto e Neto, mas entraram nomes como Alex Soares, Luís Machado, Steven Vitória, Djavan, Rosic, Filipe Soares e Abdu Conté.
GD Riopele. O nome traz-lhe memórias?
A terminar, uma lição de história. O nome é invulgar, mas certamente que diz algo aos adeptos do futebol português que já sentiam a vibração do desporto rei na década de 1970. O GD Riopele, clube já extinto, de Pousada de Saramagos, no concelho de Vila Nova de Famalicão, conseguiu uma presença inédita na I Divisão em 1977/78. Entre alguns dos jogadores que faziam parte desse mesmo plantel, com Ferreirinha como treinador, salta à vista o nome de Jorge Jesus, assim como o de Carlos Padrão.
O GD Riopele era o clube da empresa têxtil com o mesmo nome e os jogadores recebiam o salário como os empregados da fábrica, conta-nos Carlos Padrão. “O GD Riopele foi um momento fantástico do meu primeiro ano de sénior. Foram tempos inesquecíveis. A massa associativa eram os funcionários da empresa e uma administração da fábrica e do clube exemplar no trato e na preocupação para que nada nos faltasse. Foi uma época incrível de aprendizagem e de perceber a hospitalidade e a qualidade das gentes minhotas”, refere o ex-guarda-redes.


Um clube com uma vivência bem peculiar quando comparado com o paradigma do futebol português e que teve uma breve passagem pela elite, antes de conhecer a extinção em 1985. Ainda assim, não deixa de ter sido um representante do futebol minhoto a dar o ar de sua graça no principal escalão nacional. Agora, cabe a SC Braga, Vitória SC, Moreirense, FC Famalicão e Gil Vicente carregar a alma minhota para campo.