Um dos momentos que marca a consolidação da minha paixão pelo futebol é a construção do Milan de Arrigo Sacchi, uma equipa que cresceu na minha idade das certezas absolutas. Ainda estudante universitário, lembro-me de ficar duas horas parado frente à montra de uma loja de eletrodomésticos da Avenida Almirante Reis para ali ver a final da Taça dos Campeões Europeus de 1989, em que o Milan da “zona-pressing” arrasou o Steaua Bucareste por 4-0. Tudo aquilo me parecia um luxo, o pináculo do sucesso, que vim a confirmar depois quando, já jornalista encartado, pude deslocar-me a Milanello – o centro de treinos do Milan – para assistir às chegadas de helicóptero de Sílvio Berlusconi ou entrevistar Fabio Capello, o técnico que substituiu Sacchi à frente da equipa rossonera, mantendo o registo vencedor. Passaram 30 anos e do Milan resta uma sombra, bem à vista no modo como, bem mais perto da linha de água que da zona-Champions, se desfez de Marco Giampaolo e apostou todas as fichas em Stefano Pioli para tentar salvar a época. Em Outubro.
O final da década de 80 do século passado era um tempo em que o futebol italiano era a moda europeia. Em nenhum país a televisão andava tão de mãos dadas com o jogo como em Itália – o crescimento do Milan foi sempre um espelho do crescimento paralelo dos canais da MediaSet, por exemplo – e isso refletia-se no dinheiro disponível para contratar craques. Já não é assim hoje e o Milan nem foi o único a ressentir-se, como é evidente. Mas de Itália vinham também, além dos melhores programas sobre futebol, as melhores publicações sobre futebol, os debates mais interessantes, as personalidades mais fascinantes. Era ali que todos os grandes jogadores queriam jogar. Colado aos jornalistas italianos que acompanhavam o Europeu de 1992, pude estar um par de vezes à mesa com Sacchi, que foi à Suécia já enquanto selecionador nacional, e confirmei o fascínio do futebol à italiana – e do Milan em particular, porque naquela altura tudo girava mais em torno do Milan que de uma Juventus charmosa, é verdade, mas a que só o regresso de Trapattoni, em 1991, e a chegada de Paulo Sousa, mais tarde, devolveu algum carisma e interesse para o público português.
Pode simpatizar-se com o homem ou odiar tudo aquilo que ele representou em termos de política em Itália, mas há um aspeto absolutamente inegável – o grande Milan teve mais a ver com Sílvio Berlusconi do que com qualquer outro fator. E não só devido ao músculo financeiro da Fininvest, a holding do que depois viria a ser primeiro-ministro de Itália por três vezes. Bersluconi comprou o Milan em 1986. O clube tinha sido duas vezes campeão italiano nos anos 60, uma nos anos 70 e nenhuma no que já se levava dos 80. Logo no final da primeira época, em 1987, o presidente surpreendeu ao escolher o desconhecido Arrigo Sacchi – que andava pelos escalões secundários, aos comandos do Parma – para suceder ao consagrado sueco Niels Liedholm na direção da equipa. Tal como voltaria a surpreender em 1991, quando a seleção chamou Sacchi e ele nomeou para treinador Fabio Capello, ex-internacional que era comentador de um dos seus canais de televisão e cuja experiência se limitava a uma breve passagem pelos juniores do clube, anos antes, ou pela equipa técnica de Liedholm, também antes da sua chegada. Durante onze anos, excetuando uma breve passagem do uruguaio Óscar Tabarez, que foi um equívoco prontamente corrigido, o Milan só teve dois treinadores – Sacchi e Capello – ganhando no processo cinco campeonatos de Itália e três Taças dos Campeões Europeus.
Era difícil imitar uma era tão bem sucedida mas, mesmo começando a ter uma vida política mais ativa – depois de uma curta passagem pelo cargo em 1994, foi primeiro ministro de Itália de 2001 a 2006 – Berlusconi ainda tentou repetir a experiência, com Alberto Zaccheroni e Carlo Ancelotti. Entre ambos, os dois treinadores dividiram os onze anos seguintes, ganhando duas vezes a Serie A e outras duas a Liga dos Campeões. Nos onze anos que se seguiram – e que coincidem com o desligamento de Berlusconi do clube –, contudo, foi um rodopio. Começando em Leonardo, o Milan teve nove treinadores: Allegri sucedeu ao brasileiro e ainda ganhou o campeonato de 2010/11, mas depois vieram Seedorf, Inzaghi, Brocchi, Mihajlovic, Montella, Gattuso e, agora, o recentemente demitido Marco Giampaolo, que também vai ceder a posição a Stefano Pioli. Pelo meio, o clube foi vendido ao chinês Li Yonghong, que por não ter sido capaz de cumprir os pagamentos devidos acabou por ter de ceder a sua posição ao fundo de investimento norte-americano Elliott. Desde 2013, ainda com Allegri, que o Milan não acaba no Top3 do campeonato, tendo mesmo chegado a ser décimo. Giampaolo, que chegou após três anos de trabalho e de uma ideia de jogo atrativo na Sampdoria, caiu ao fim de sete jornadas (com apenas nove pontos ganhos), sacrificado não apenas pelos resultados mas por, no entendimento da administração, não estar a valorizar devidamente os jovens que o plantel tem.
É altura de os adeptos milanistas se convencerem – sobretudo os mais velhos, que ainda se lembram da era dourada, ou os que agora se arregimentam para protestar contra a nomeação de Pioli como treinador. Este Milan já não está para ganhar. Está para valorizar. E esse é um dos maiores problemas colocados pela crescente intervenção dos fundos de investimento no capital dos clubes.