A enorme especificidade inerente à sua atividade tem permitido ao futebol tornar-se exceção numa série de assuntos, entre os quais a legislação laboral se tem tornado o mais importante de todos. Tempos houve em que, escudando-se na lei geral do trabalho, alguns futebolistas rescindiam os contratos por “razões psicológicas”, quando tudo o que pretendiam era assinar por clubes rivais, a ganhar mais. Outros saiam limitando-se a dar aos clubes um aviso prévio e vendo depois os seus advogados defender que lhes bastaria pagar o valor correspondente à compensação que lhes faltava receber no remanescente dos seus vínculos, como se fossem um trabalhador comum. Isso, hoje, não é possível. Os clubes fizeram valer a justa pretensão à especificidade, fundada nos elevados valores investidos nos passes dos jogadores, que não podiam ser reduzidos a zero de um momento para o outro. E é isso que inviabiliza a aplicação ao futebol de procedimentos como o do lay-off.
Comecemos a olhar para o caso de forma simplificada e sem sequer introduzir temas como o dos direitos de imagem, que não são salário – e por isso não serão sujeitos a este tipo de cortes –, mas que são onde a generalidade dos futebolistas mais bem pagos vai buscar boa parte dos rendimentos. Uma das coisas que o lay-off permite aos trabalhadores, quando estes se veem privados de dois terços do salário, é a possibilidade de começarem a trabalhar para outras empresas, caso em que a compensação recebida é recalculada ou até anulada. Ora aí está: esta é uma alínea do decreto que foi pensada para permitir aos trabalhadores em geral compensarem a perda de rendimentos com outro tipo de atividade, mas que se a aplicarmos aos futebolistas pode permitir aos jogadores voltarem ao tempo das rescisões sem a devida compensação aos clubes. É isso que os clubes querem? Será que o Benfica quer ver Rúben Dias complementar a sua atividade no Tottenham? Ou que o FC Porto admite ver Alex Telles compensar a perda de rendimento devida ao lay-off com um contrato com o FC Barcelona? Claro que não.
A FIFA quer impor uma regra geral para atacar o problema da quebra de receitas dos clubes e eu acho que, como princípio, essa é uma ideia válida, para não agravar as desigualdades. Mas esta regra geral parte de um pressuposto errado – o de que o problema é geral. E a verdade é que não é. Nem recorro já às manchetes dos jornais. Ainda hoje, o As dizia que Pogba está mais perto do Real Madrid; o Sport e o Mundo Deportivo falam nas contratações de Lautaro e Neymar pelo FC Barcelona; e a Gazzetta dello Sport aborda o mercado na base das vendas em saldo no Mundo pós-Covid19 e dos sonhos que esta pandemia pode permitir aos clubes italianos. Em Itália, aliás, o acordo entre clubes e jogadores visando a redução dos salários parece estar longe, como está ainda muito mais longe em Inglaterra, onde a resposta dos futebolistas à ideia de redução salarial foi a de que isso prejudicaria grandemente o NHS, o Serviço Nacional de Saúde, que assim se veria privado das suas elevadas contribuições. De 227 milhões de euros em impostos, mais concretamente.
A questão é que não há uma realidade global para se poder pensar numa solução também ela global. Se, tal como os ingleses ou os italianos, os clubes portugueses verão desaparecer as quatro principais fontes de receita – bilheteira, TV, vendas de merchandising e, no nosso caso, sobretudo, as mais-valias do mercado de transferências – a verdade é que não têm a almofada de lucro acumulado dos que jogam na Premier League. E aí, os da Série A italiana também não lhes chegam sequer aos calcanhares. O futebol português é, neste particular, um caso muito diferente do inglês, do espanhol ou do italiano. Por isso, por cá, mais do que de um lay-off, o que faz falta é bom-senso para não se matar a galinha dos ovos de ouro e solidariedade, para mostrar que o futebol não está cheio de Hoekstras. Se há quem possa cortar, pois que corte. Quem não pode, que o faça saber e o comprove. Da mesma forma que quem está em condições de continuar a pagar deve fazê-lo e quem não consegue deve fazê-lo saber e comprová-lo. O que competirá à Liga e ao Sindicato é encontrar formas seguras de fiscalizar e de não deixar que a competição seja desvirtuada com benefícios a quem deles não precisa.
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