Mais do que transportar a conversa para o folclore dos “fruteiros” ou dos “padres”, o impasse que se vive neste momento em muitas Ligas devia levar quem anda no futebol a discutir e a encontrar um modelo de governance que deixasse a modalidade ao abrigo destas guerras. Até porque elas não são apenas uma particularidade portuguesa: na Escócia, Steven Gerrard, manager do Rangers, anda inconsolável por ver a influência do poderoso Celtic na decisão de dar já por terminada a temporada, atribuindo o título aos católicos, que levam 13 pontos – com um jogo a mais – de avanço na frente da tabela.
O que está aqui em causa não é a decisão de quem vai ganhar as Ligas em 2019/20, se elas não chegarem ao fim. Não estando o tema previsto em regulamento, todas as opiniões são válidas, seja a de que se deve coroar o atual líder, a de que se deve premiar quem ia à frente no final da primeira volta, com todos a jogarem contra todos, ou a minha, que é a de que não deve haver campeões, porque os campeonatos não acabaram e ninguém sabe o que iria suceder nas jornadas que faltam. O relevante aqui é que eu acharia exatamente o mesmo se a classificação estivesse ao contrário – e o mesmo não poderão dizer muitos dos que têm vindo a defender as outras duas posições, ambas marcadamente clubísticas. O que permite transportar o nível do debate para as razões que me levam a defender aquilo que defendo: é que me é absolutamente indiferente se ganha um ou outro, aquilo que me interessa é que ganhe o melhor, que ganhe quem mais o merecer e justificar, porque essa é a melhor forma de proteger a integridade da competição.
O exercício que vos proponho é que transportem este exemplo para a realidade das Ligas – e nem tem de ser a portuguesa, pode bem ser a escocesa, para que os raciocínios não fiquem toldados pela clubite. Aquilo de que se queixa Steven Gerrard é que o predomínio do Celtic no edifício do futebol escocês – foi campeão nos últimos oito anos – lhe garantiu o controlo das assembleias da Liga e a capacidade de influenciar as votações finais. E para imaginar como nem é preciso chegar a teias de corrupção envolvendo equipas de arbitragem ou dirigentes da LIga: monopolizando as participações nacionais na Liga dos Campeões, passa a ter muito mais dinheiro do que os rivais, pode assegurar os melhores jogadores locais e depois distribuí-los por cedência pelas restantes equipas, assegurando um capital de boa-vontade que pode refletir-se mais tarde em votos. Isto é a natureza humana a funcionar, não é nada de estranho para quem quer que seja.
O que está aqui em causa é, portanto, a organização das Ligas, que ainda não perceberam bem se são associações de clubes ou entidades independentes que organizam campeonatos. E isto faz toda a diferença. Porque uma associação de clubes, em que todos têm direito a um voto, vai estar sempre vulnerável a estes jogos de influências – que no limite são maus para a imagem que a competição transmite para o exterior e para a sua credibilidade. E o futebol de hoje, a partir do momento em que move tanto dinheiro – e já não tenho saco para os que acham que devia deixar de envolver, porque exigir isso é como acabar com a indústria do pronto-a-vestir para irmos todos à costureira do bairro… – não se compadece com esse tipo de modelo. Do que o futebol precisa é de entidades independentes, capazes de organizar um campeonato e cujo caderno de encargos deve ser o crescimento da influência e (sim) do volume de negócios que esse campeonato envolve, pela via do aumento da sua competitividade. Porque crescer o volume de negócios significa que há mais adeptos-consumidores satisfeitos com o que estão a ver. E esse é que é o objetivo.
“seja a de que se deve coroar o atual líder, a de que se deve premiar quem ia à frente no final da primeira volta, com todos a jogarem contra todos, ou a minha, que é a de que não deve haver campeões,” – permita que acrescente uma outra hipótese que, como as restantes, é polémica também. Método esse usado em tempos que lá vão, quando fossem interrompidas corridas: o prémio era dado a quem, durante mais tempo (neste caso jornadas), se tivesse mantido à frente, e ao resto da classificação aplicado o mesmo método. Polémico também, como avisei. Mas a sua solução, de não atribuição de título de campeão, ilude um problema porventura maior para os também depauperados e dependentes clubes de topo portugueses: quem vai à Liga dos Campeões, quem pode, mesmo no lugar abaixo, poder ter acesso a jogar a LC? esse, mais do que o título de campeão, é o €problema€ do(s) clube(s) portugueses.