Há dois futebóis. O do campo, que é aquele pelo qual todos começamos a gostar deste jogo, e o dos advogados, que basicamente serve para torcer legalmente as condições em que se disputam as competições no relvado. Quer dizer, na verdade há mais futebóis. Há igualmente o dos gestores, o dos marketeers, o dos agentes de jogadores… Ultimamente apareceu o dos spin doctors, que se joga noutro universo, dentro dos estúdios de TV a tentar convencer toda a gente de que os diferentes tons de cinzento são ou preto ou branco, consoante quem estiver a fazer girar a roda. Mas no fundo a ideia é a de que há dois futebóis: o que se joga no campo e depois tudo aquilo que serve para tentar distorcer o que se passa no campo. Eu sou pelo primeiro e estou pronto a tolerar o segundo, desde que ele não ultrapasse determinados limites.
A investigação levada a cabo pelo Público acerca das relações entre o Benfica e o CD Aves até pode cair pela base. É para fazerem estas coisas legalmente que o Benfica – e os outros clubes – entram no campeonato do futebol dos advogados. Ainda no passado sábado, estava eu em estúdio, na RTP3, quando o advogado Gonçalo de Almeida, professor universitário que até já trabalhou no gabinete jurídico da FIFA, explicou ao Alexandre Santos que não via neste caso nenhuma ilegalidade. No fundo, a ideia é a de que neste processo toda a gente saía a ganhar: o Benfica, porque podia recuperar jogadores que em dada altura já não lhe serviam e os mantinha dentro do seu radar; o CD Aves, porque os recebia sem ter de os pagar e ainda ganhava uma percentagem do passe se eles depois fossem transferidos; e até os próprios jogadores, que viam a carreira ganhar caminho num coletivo que joga na I Liga. Mas, depois de reconhecer que a limitação ao total de empréstimos por parte de um clube se deve à necessidade de “acautelar a verdade desportiva e a integridade das competições”, houve uma pergunta à qual Gonçalo de Almeida não foi capaz de responder: “e ficam acauteladas desta forma?” “Em relação a esta matéria, a Liga não tem forma de intervir”, respondeu. É uma forma elegante e sem compromisso de se dizer: não, claro que não fica.
E é esse o meu problema com o futebol dos advogados. É que se os guarda-redes entram em campo para fazer grandes defesas, os defesas para tentar desarmes limpos, os médios para ligar as pontas de uma equipa e os avançados para marcar grandes golos, os advogados entram em campo para imaginar formas legais de fazer aquilo que as leis tentam impedir. O Benfica não começou a fazer isto ontem e até pode nem ter sido o primeiro clube a espalhar a sua rede de influências por outras equipas da prova em que participa: há anos, o FC Porto fazia-o através da “colocação” de uma rede de treinadores a ele ligados, completando a estratégia através dos empréstimos, sendo que o Sporting, se não o fez, foi por pura incompetência, que sempre lamentou. Nestas coisas, porém, é irrelevante perceber quem foi o primeiro a fazê-lo – importante é impedir que seja feito em 2020.
Como esta forma de torcer a verdade desportiva se tornou mais ou menos evidente, a Liga proibiu qualquer clube de emprestar mais de seis jogadores a equipas da mesma competição – e mais de um a cada um desses adversários. E os advogados criaram esta forma de dar a volta ao texto, sendo que a grande diferença entre estes contratos e os de empréstimo é que, nas cedências, os jogadores vão para o CD Aves e podem recusar voltar ao Benfica, se os chamarem da Luz, enquanto que nos empréstimos ficam contratualmente obrigados a fazê-lo. Aliás, já estamos todos a ver um jogador do CD Aves por quem o Benfica volta a manifestar interesse a dizer: “não, desculpem, mas aqui sou mais feliz. Não me interessa nada ir ganhar mais e jogar a Liga dos Campeões se posso ficar aqui tranquilamente a jogar pela manutenção”.
Claro que no futebol dos advogados também há muitas equipas. Há os que trabalham nos clubes e tentam merecer o dinheiro que ganham encontrando buracos legais para fazer o que não devia ser feito e há os que criam os regulamentos de forma a que os advogados dos clubes tenham mais dificuldades em os contornar. E o que está em causa neste jogo não são só os empréstimos criativos. É muito mais do que isso. São os artifícios contabilísticos que servem para ludibriar as regras do ‘fair-play financeiro’ – e aqui, se os advogados do Paris Saint-Germain ainda têm o jogo empatado a zero, os do Manchester City já estão a perder com os da UEFA. São os fundos de investimento e de capital de risco e a possibilidade que dão ao dinheiro sujo de inflacionar os mercados do futebol. É a questão da propriedade dos clubes, que já devia ter saltado para a ribalta internacional no início da época, quando o RB Salzburgo e o RB Leipzig jogaram a mesma competição internacional – felizmente em grupos diferentes – mas que, mais cedo ou mais tarde, vai deixar duas equipas pertencentes ao mesmo dono no mesmo grupo da Champions ou da Liga Europa.
É por saber que esses jogos mais importantes se aproximam que se torna cada vez mais importante entender o futebol dos advogados. Porque o futuro do futebol de campo passa muito por aqui.
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