Em tempos de pandemia e medo, na Nicarágua o futebol não para. Isso deve-se às ideias de Daniel Ortega, o presidente do país, que pretende sobretudo manifestar estabilidade e poder interno para o resto do mundo. Além da Nicarágua, os campeonatos continuaram apenas na Bielorrússia, no Burundi e no Turquemenistão. Neste país da América Central, onde se suspeita de que o número real dos casos de Covid-19 esteja a ser ocultado (até ao final da semana, estavam anunciados cinco), os encontros decorrem à porta fechada, mas prosseguem. Há jogadores a começar partidas de máscaras e luvas e só um clube rema contra a maré ao tentar, ainda que sem apoio, que o principal escalão seja suspenso. O Managua lidera a tabela classificativa do torneio Clausura na Nicarágua.
“Supostamente há mais infetados, mas estão a ser ocultados, talvez para não criar alarme. Um companheiro nosso tem familiares que trabalham num hospital e disse que há mais infetados.” Foram estas as palavras de Leandro Figueroa, jogador do Walter Ferretti, equipa do principal escalão na Nicarágua. Ainda a meio desta semana, o ‘La Prensa’, diário do país, dava conta de que por lá não são revelados quantos testes à Covid-19 já foram efetuados. Para que se entenda perfeitamente a forma como a pandemia está a ser levada pelos principais líderes, o presidente Ortega convocou uma marcha proclamada como “Amor nos tempos de Covid-19”. Assim se vê que o isolamento não é, de todo, uma prioridade por aqueles lados.
Esta continuidade do futebol pode explicar-se através de um acontecimento de 2018. Em abril desse ano, a liderança de Ortega conheceu um ponto crítico devido a um protesto realizado pela população nas ruas. A solução encontrada pelo presidente passou pela violência, mas desde então que nada foi igual. A economia do país está em queda e são várias as greves levadas a cabo pelos trabalhadores. É precisamente através do desporto que se pretende passar uma imagem de tranquilidade para fora. “Não suspender a liga é o resultado da urgência do governo em provar uma normalidade que não existe. Desde 2018, eles estão a tentar desesperadamente mostrar que as coisas voltaram ao normal e isso inclui os desportos a correrem de feição. O coronavírus tornou-se uma grande ameaça, pois eles [governo] estão com receio de uma greve geral e parar tudo iria permitir isso mesmo”, contou ao ‘The Guardian’ o jornalista Camilo Velásquez.
O que contribui ainda mais para que a Liga da Nicarágua não pare é a posição dos dez clubes presentes. Entre eles, apenas o Diriangén (clube mais antigo do país e terceiro classificado do Clausura) se opôs à continuidade da competição. Como se explica isto, quando vivemos tempos tão conturbados? Ora bem, o Diriangén é tido como o único clube que não recebe fundos do Estado. Ainda assim, quatro das equipas dizem ter proprietários privados. A título exemplificativo, o Walter Ferretti tem como dona a polícia da Nicarágua, enquanto os salários do Managua provêm do escritório do governador da capital. Assim sendo, não é tanto de estranhar que a maioria dos emblemas sigam as diretrizes dadas por Ortega, sem qualquer contestação.

“Queremos suspender o campeonato, mas todos os clubes votaram e a maioria quer continuar” explicou ao ‘The Guardian’ Sergio Salazar, diretor do Diriangén. “Os nossos jogadores não querem continuar a jogar. Têm medo e entendemos. Continuar-se-á a jogar até que o Ministério da Saúde recomende o contrário”, prosseguiu ainda o dirigente do clube. Com as partidas a serem disputadas à porta fechada desde 20 de março, o Diriangén tem mesmo vindo a assumir-se como o motor da revolta. Os jogadores começaram a entrar em campo de máscara e na passada quarta-feira até posaram para a habitual fotografia com alguma distância entre eles. Mas, já foram mais além.
As precauções possíveis
Na jornada mais recente, Bernardo Laureiro, avançado uruguaio de 28 anos do Diriangén, jogou mesmo de máscara e luvas cirúrgicas. “[Contra o Deportivo Ocotal] resolvemos todos entrar de luvas e máscaras. Senti-me estranho a jogar dessa forma mas era preciso fazê-lo para deixar uma mensagem às pessoas”, começou por contar o atacante, em declarações ao ‘Mundo Deportivo’. “Mas foi difícil. Eu aguentei quase 20 minutos com a máscara, mas depois tirei-a. Era quase impossível respirar”, prosseguiu o relato. Laureiro marcou até um golo e confidenciou que nos festejos houve abraços entre colegas. Ainda assim, quando se deu o apito final, “fui vestido para casa da mesma forma como terminei o jogo. Só tirei as botas no banco de suplentes.” Porque continuam, então, a jogar os futebolistas deste emblema? “O clube deu-nos a possibilidade de decidirmos se queríamos jogar. 85 por cento de nós dissemos que sim, porque se não jogares duas partidas consecutivas multam-te”, explicou.
Apesar de ter de continuar a jogar, o Diriangén tem tomado as devidas precauções. “Quando chegamos ao estádio, temos um funcionário do clube à nossa espera, que nos dá uma máscara, um par de luvas e álcool com gel. Cada um tem a sua garrafa de água. Eu já entro equipado para treinar, tento nem ir ao balneário. A única coisa que faço no clube é calçar as botas quando já estou no relvado, geralmente junto ao banco de suplentes. O treinador dá instruções de treino com a máscara colocada. Assim que termina o treino, tiro as botas e vou para casa sem tomar banho. Chego, tiro a roupa, separo para lavar, depois tomo banho”, confidenciou Laureiro.

O sentimento de segurança entre ameaças
São poucos os futebolistas que têm falado à comunicação social na Nicarágua, até porque as próprias publicações do país não têm jornalistas nos estádios. Apesar disso, alguns jogadores das equipas que são a favor de continuar com a competição mostram-se solidários com essa posição. “Não há preocupação da minha parte. O meu trabalho é jogar e enquanto o departamento a cargo da saúde do país não suspender essas atividades, tudo continua como normal”, comentou Dshon Forbes, atacante do Walter Ferretti ao ‘The Guardian’. “Se sentisse que a minha integridade física estava em risco, tenho a certeza de que poderia falar com eles [equipa], mas estou seguro e acredito que as medidas apropriadas estão a ser tomadas”, considerou Pablo Gállego, do Managua, à mesma publicação.
Muitos destes jogadores até podem não se sentir realmente como dizem, mas há quem diga que estão a ser alvo de ameaças para continuarem a jogar sem contestar. “Os jogadores estão muito, muito assustados. Quando o salário provém do futebol e é o estado quem o paga, dá para perceber o porquê de permanecerem em silêncio”, referiu o jornalista Camilo Velásquez, dando ainda conta de que alguns futebolistas o contactaram de forma privada dizendo que se sentem sem ajuda e forçados a jogar.
O dinheiro a falar e a atenção inesperada
O futebol nem é o desporto rei na Nicarágua, esse é o beisebol, por isso mesmo as razões financeiras acabam por falar mais alto em momentos como este. “Se te confinas na Nicarágua, morres de fome. As pessoas vivem o seu dia a dia porque há muitos postos de trabalho independentes. Se deixas de trabalhar, deixas de faturar”, frisou Gallégo em declarações ao ‘El Español’. “Os clubes mais importantes aqui, os que sempre lutam pelo título, são o Diriangén, o Estelí, o Ferretti e o Managua. O Estelí é o que paga melhor, entre três a cinco mil dólares por mês a alguns jogadores. Os restantes pagam menos. O futebol dá-te um nível de vida médio, normal. O custo de vida aqui até é barato. Eu até para os treinos ia de autocarro, sou sincero, mas agora tenho ido de carro porque os transportes públicos vão repletos de gente e é um risco estar em contacto com pessoas”, disse Figueroa ao ‘La Nación’, publicação que avança que jogadores foram obrigados a jogar sob ameaça e chantagem, o que resultou ainda em algumas rescisões de contrato.

Já houve uma ligeira onda de apoio à ‘revolta’ do Diriangén, mas cedo terminou. O Real Madriz, por exemplo, chegou a anunciar nas redes sociais de que não iria a jogo contra o Real Estelí a 22 de março. No entanto, não tardou até que a publicação fosse ocultada nas redes sociais. O que terá causado isso? Não há certezas, mas a verdade é que o clube acabou mesmo por jogar esse encontro.
À semelhança do que aconteceu com a Bielorrússia, o facto de ser um dos poucos países com futebol a decorrer dá à Nicarágua uma atenção que nunca antes conheceu no mundo do futebol. Tanto que existe até quem considere que a propagação do coronavírus foi boa, pelo menos para o campeonato. “Bem, a Nicarágua conseguiu atrair a atenção de muita gente de diferentes países que normalmente não olham para a nossa liga. A repercussão do Covid-19 acabou por ser boa para liga, as pessoas agora estão interessadas e vieram conhecer mais sobre a Liga da Nicarágua.” Foram estas as palavras de Carlos Félix, jogador do Managua, em declarações à ‘BeIn Sports’. Ainda assim, no fim de contas, a saúde deve estar em primeiro lugar, tal como aponta Gallégo. “Claro que sinto que existe agora muito mais atenção à nossa liga. Mas o que mais interessa é mesmo que o vírus não se propague aqui na Nicarágua. O futebol deve vir depois.” Primeiro a vida, depois o futebol.