No futebol, como na vida, nem todos os génios são compreendidos na sua plenitude. Nem o mais influente dos treinadores é sempre recompensado com o sucesso ou com títulos. Muitas vezes, esse sucesso vem por via de outros. Dos que inspira. Dos que pegam nos seus ensinamentos e os aperfeiçoam. Helmut Gross é um desses homens. Nunca treinou um clube profissionalmente, mas é um dos atores mais influentes do futebol atual. Um génio revolucionário que se move nas sombras. Pai do futebol contemporâneo.
No futebol alemão há, muito provavelmente, um antes e um depois do dia 18 de dezembro de 1998. O plano de recuperação do jogo germânico só nasce um par de anos mais tarde e com o falhanço monumental da Mannschaft no europeu de 2000, mas naquela noite, num canal televisivo alemão, Ralf Rangnick dava o mote para a que viria a ser a maior revolução da história do futebol do país. Ali, Rangnick explicou porque o país tinha de deixar cair o líbero. Defender a quatro. Pressionar alto e agressivo. O espaço, não o homem. Nada mais foi igual.
Helmut Gross nunca treinou um clube profissional, mas nem por isso foi menos importante na revolução tática alemã que por estes dias vai dominando o futebol atual. Se só na viragem do milénio os alemães começaram a desenhar o jogo como ele é hoje mais jogado e mais bem-sucedido, foi já nos anos 80, em meados dos anos 80, que Gross introduzira o futebol alemão à marcação zonal e à pressão espacial. Afinal, Gross, tinha em Lobanovskyi e Ernst Happel as suas referências. Hoje, é ele a referência.
Depois de um ano sabático motivado pelo falhanço chinês ao comando do Beijing Guoan, Roger Schmidt regressará ao ativo na próxima temporada para relançar o PSV e, mais do que isso, relançar-se a si próprio. Aos 53 anos, Schmidt é um treinador de culto, mas o sucesso desportivo não o acompanhou desde que o alemão deixou a Áustria. Antes disso, havia feito história com o Preussen Munster e com o SC Paderborn, a ponto de se assumir como um dos mais entusiasmantes técnicos da nova escola alemã. A que Gross “fundou”.
Ralf Rangnick, Roger Schmidt, Thomas Tuchel, Markus Gisdol, Alexander Zorniger, Adi Hutter e muitos outros. A influência de Helmut Gross é quase universal na Bundesliga atual e, com a chegada de Schmidt e de Tuchel a clubes continentais, a ramificação dessa influência extravasa fronteiras políticas. Gross nunca conheceu o sucesso desportivo, mas o seu legado é imenso. O sucesso de Rangnick, Schmidt, Tuchel, Gisdol, Zorniger e Hutter é também o sucesso de Gross. Afinal, nem todos os génios são recompensados. Que o digam Bielsa, Telê Santana ou mesmo Rinus Michels, que nunca levou a Holanda a um título mundial.
Para Gross o futebol é uma paixão, mas este nunca o controlou. Hoje com 72 anos, fez carreira na engenharia civil, mais concretamente na construção de pontes. Ironia do destino, qual metáfora perfeita para os pontos que ajudou a ligar no futebol. “Gosto de viver em plano de fundo”, explica. Gross nunca quis fazer carreira no futebol, mas era inevitável que nele acabasse por ter a sua importância. Desde há vários anos que caminha ao lado de Rangnick. Ora no VfB Estugarda ou no TSG Hoffenheim, onde assumiu posições no “background”, ora até há bem pouco tempo em Leipzig e Salzburgo, como conselheiro do “Professor” e de todo o projeto Red Bull por ele encabeçado e onde Gross é “chief scout” e “coach-advisor”.
Se em 1998 Ralf Rangnick ganhou para sempre a alcunha de professor pela aula dada em plena televisão alemã, Gross é o mestre dos professores. Já desde meados dos anos 80, quando assumiu uma posição de formador de técnicos na associação de futebol de Württemberg, onde acabou por exercer a sua grande influência na nova escola germânica. “Schmidt, Gisdol e eu próprio fomos desenhados por Helmut Gross. Um grande técnico de Württemberg, que já defendia à zona e com a bola como referência, num jogo de pressão, desde meados dos anos 80”, confessou Rangnick, há alguns anos, ao Spiegel.
Rangnick referiu três, mas podia ter falado em muitos mais. Gross lançou as bases para os que são hoje conhecidos como Konzeptrainers: treinadores de processo, de futebol de autor, com um modelo de jogo bem definido. Treinadores de longo prazo, como são também Tuchel ou Adi Hütter, outros seguidores da filosofia futebolística defendida pelo septuagenário. “A colaboração entre Rangnick e Gross influenciou-me imenso. Ambos têm muita experiência neste tipo de futebol”, admitiu Roger Schmidt, que deixou o Paderborn a convite de Rangnick para assumir o Salzburgo em 2012. Venceu uma liga e uma taça.
Apelidado por Markus Gisdol como o “Arrigo Sacchi alemão”, Gross teve também no italiano uma grande influência. Gross e Rangnick eram obcecados pelo futebol de Sacchi, tendo sido o italiano a moldar parte do pensamento filosófico-futebolístico que os dois implementaram a partir de então em clubes como o SSV Ulm, o Estugarda, o Hannover 96, o Schalke 04, mas, principalmente, em Hoffenheim e em todo o projeto Red Bull.
“Na altura comprei um gravador de vídeo. Último modelo. O mais caro do mercado. Mas rapidamente aquilo avariou porque rebobinávamos cassetes tantas vezes só para conseguirmos analisar todos os pormenores táticos das equipas de Sacchi… E não só”, admitiu Gross. Nem Gross nem Sacchi alguma vez jogaram futebol profissional, mas tal não os impediu de, hoje, serem duas das figuras mais influentes do jogo contemporâneo.
Sacchi, porém, não foi a única figura central do modelo de pensamento de Gross e Rangnick. É parte dele, somente, no que diz respeito à pressão feita após perda de bola. Antes disso, tanto Happel como Lobanovskyi foram fundamentais para outro dos pilares da filosofia alemã: a marcação à zona. Gross é um defensor fiel da marcação à zona e, numa altura em que ninguém o fazia na Alemanha, estava lá Helmut Gross. Mais tarde, com Rangnick, tornou-a popular, numa altura em que apenas duas ou três equipas utilizam uma linha de quatro na defesa e o faziam.
“Happel foi um dos nossos maiores modelos. Dele retirámos alguns dos nossos princípios, como a defesa a quatro e a linha/armadilha de fora de jogo”, admitiu. Outro foi Lobanovskyi, que Gross seguiu atentamente durante os anos 80, quando o Dínamo Kiev do lendário técnico ucraniano realizou um campo de treino a meio da temporada na zona oeste da Alemanha. Gross estava lá para assistir, tal como Rangnick, cuja admiração pelo ucraniano nasceu quase por acaso.
“Em 1984, treinava o Viktoria Backnang e jogamos um particular contra o Dínamo Kiev de Lobanovskyi. Pontualmente tinham um estágio de inverno num centro de treinos próximo e fomos os adversários nesta ocasião. Não acreditava no que estava a ver. A mobilidade e a energia com que jogavam… a forma como se organizavam em campo era impressionante”, confessou Rangnick.
Gross pode nunca ter treinado uma equipa profissional, mas é como se o tivesse feito. Afinal, Rangnick é como se de uma extensão dele próprio se tratasse. “Com o passar dos anos percebi que as minhas ideias e aquelas que trabalhamos em conjunto vêm sendo aplicadas na perfeição por Rangnick”, afirmou Gross. Rangnick, mais tarde, teve também em Zdenek Zeman uma das suas grandes influências, assistindo a todas as sessões de treino de pré-temporada quando o checo orientava o Foggia. Zeman também era um pioneiro da pressão e da cobertura total do terreno de jogo.


Trinta anos de influência inequívoca
Gross e Rangnick cruzaram caminho há mais de trinta anos e nunca mais se separaram, mudando para sempre aquilo que era a face do futebol alemão a partir do início do novo milénio. “Gross estava à frente do seu tempo. Quando tinha 25 anos e o conheci percebi que era um homem completamente à parte. Vimos um jogo do Milan de Sacchi no dia seguinte. Aqui na Alemanha ninguém jogava como eles”, admitiu Rangnick. Desde então, Gross e Rangnick desenvolveram métodos de ensino para treinadores especificamente destinados à marcação zonal com foco na bola, e o próprio material de estudo foi criado pelos dois técnicos de forma a estender as suas ideias aos jovens técnicos e clubes amadores da região de Württemberg.
Tuchel foi um dos homens/treinadores que nasceu fruto deste casamento. Em Estugarda, Gross e Rangnick tomaram conta da academia do clube e definiram um modelo de atuação do ponto de vista organizacional que seria referência nos clubes da região. Todos os escalões do Estugarda passaram a jogar da forma que Gross e Rangnick idealizavam como futebol perfeito. “Podia ser comparado à escola do Ajax, quando Gross e Rangnick instituíram um novo modelo de jogo no clube no final dos anos 80 e inícios de 90. Inspirou-me totalmente”, admitiu há uns tempos Thomas Tuchel.
Hoje, depois de definirem taticamente o futebol como é jogado na contemporaneidade, trazendo a Alemanha para a modernidade, Gross e Rangnick definem um modelo de gestão desportiva perfeita em Leipzig e Salzburgo. Um modelo que tem muito mais de gestão que de tática, especialmente no que à adaptação do modelo ao mercado de transferências diz respeito. Afinal, o grande legado do projeto Red Bull passa muito por aí: observação clínica e contratação cirúrgica. Não se contratam as principais estrelas, mas sim aqueles jogadores que melhor se adequam ao estilo de jogo definido. Pilares elementais de um bom projeto desportivo.
Hoje, mais do que dentro de campo, a revolução vai-se fazendo fora dele e os protagonistas voltam a ser os mesmos. É que mais do que um modelo exigente do ponto de vista físico e tático, o futebol de hoje faz-se muito de exigência mental. “As principais evoluções dão-se no treino mental. O jogador tem de perceber, analisar, antecipar e decidir rapidamente, executando em questão de décimos de segundo. O potencial do cérebro é infinito e não podemos desvalorizá-lo. Há investigadores dedicados a desenvolver jogos eletrónicos especiais para os jogadores desenvolver a capacidade de pensamento. Todas estas coisas são-nos indispensáveis no projeto RB. Temos, entre outras coisas, relações próximas com universidades com quem aprendemos muito”, explicou Gross à SPOX.
Gross e Rangnick, por consequência, não introduziram apenas a Alemanha à marcação à zona e a ter a bola como referência. Serviram de base para aquilo que hoje conhecemos como gegenpressing e que permitiu a técnicos como Jürgen Klopp ascender ao topo do futebol mundial, ainda que o atual técnico do Liverpool FC tenha sido mais influenciado por Wolfgang Frank do que pela dupla anterior. “Um bom sistema de pressão é o melhor playmaker que uma equipa pode ter”. Klopp disse-o, mas podê-lo-ia ter dito Helmut Gross.
Mais do que um sistema defensivo, a ideia de pressão de Gross era um sistema ofensivo sem bola. A ideia não era tanto evitar que o adversário marcasse, mas criar condições para a própria equipa chegar ao golo. Atacar sem bola, procurando-a de forma agressiva reduzindo o tempo e o espaço à organização ofensiva adversária. Obrigar estes a errar, recuperando a bola em zonas altas do terreno, próximas da baliza rival. “A minha ideia foi sempre a de recuperar a bola o mais rápido possível e foi assim que a ideia de cobertura de espaço com foco na bola nasceu”, explicou Gross.
“Através de um posicionamento inteligente conseguimos forçar o adversário a jogar curto ou a falhar passes longos. As pessoas acham sempre que períodos de posse de bola longos levam à criação de mais oportunidades de golo. Esta correlação não tem demonstração analítica”, afirma. Segundo Gross, não é precisa muita posse de bola para criar muitas e boas oportunidades de golo. Não são precisos períodos longos de posse para progredir no terreno. Segundo Gross, a eliminação da Alemanha aos pés da França, no Euro 2016, até esteve relacionada com isso mesmo.
“A Alemanha teve demasiada posse de bola. Quando tens demasiada posse de bola retiras ritmo ao jogo. Jogas demasiado na lateralização”, explicou. Ainda assim, admitindo que uma posse de bola longa pode levar à fadiga mental adversária como era segredo o FC Barcelona de Pep Guardiola e é pilar da filosofia “Tiki Taka”. “Em Leipzig não nos cansamos mentalmente quando não temos a bola. Na verdade, até preferimos que seja o adversário a ditar o tempo de jogo. Desse modo temos mais possibilidade de recuperar a bola e fazer o nosso jogo”.
Desde que Gross e Rangnick surgiram no panorama tático futebolístico, nunca a expressão o ataque é a melhor defesa fez tanto sentido e mesmo que os dois não tenham servido de influência a Pep Guardiola, há princípios que são idênticos. “As equipas de Guardiola nunca precisavam de mais de cinco segundos para recuperar a bola”, analisou Gross.
A ideia é simples, portanto. Defender, atacando. Se com bola a ideia passa por ataques verticais e vertiginosos através de combinações rápidas entre os jogadores levando a bola o mais rapidamente possível para a baliza adversária, sem bola, em vez de recuperar atrás e esperar pelo adversário, a ideia é subir linhas e pressionar em bloco de forma agressiva. Lá está, retirando tempo e espaço ao adversário. Este foi também um dos maiores segredos do sucesso do Barcelona de Guardiola, com as diferenças a serem notadas depois na forma de atacar durante o momento de organização ofensiva após recuperação da bola.
Fundamental para o sucesso deste tipo de modelos é ter uma distribuição estreita em campo, já que acaba a popular terrenos centrais fundamentais para a construção de jogo adversária de forma pausada, obrigando o adversário a lateralizar para zonas onde é menos fácil criar desequilíbrios, ou obrigar o adversário a errar em zona proibida. “Quanto três jogadores pressionam como se de um enxame se tratasse pode parecer caótico, mas é um tipo de caos controlado e altamente criativo”, descreve Gross.
A ideia não é nova, é certo, já Happel e, principalmente, Michels, a tinham celebrizado, mas só quase cinquenta anos depois se tornou verdadeiramente popular e universal, propalando Klopp para o topo da cadeia alimentar com o seu gegenpressing e futebol heavy metal que vai tendo agora em Marco Rose, Thomas Tuchel, Oliver Glasner, Gerhard Struber ou mesmo Julian Nagelsmann as novas caras. O que dantes era pontual, é hoje regra, ajudando a Bundesliga a transformar-se na grande liga mais entusiasmante da atualidade. Nas sombras, Gross definiu quase tudo, e como o futebol é hoje jogado. Um revolucionário discreto, mas pai do futebol contemporâneo.