A potencial compra do Newcastle United pelo reino da Arábia Saudita não apresenta uma série de problemas novos ao futebol – faz emergir aqueles que já todos conhecemos, ainda que muitos de nós optem por ignorar. Ainda hoje, no The Guardian, o colunista Jonathan Liew chamava a atenção para o facto de a maior ameaça à operação não vir das objeções a ela colocadas pela Amnistia Internacional ou pela Human Rights’ Watch, mas sim de uma carta entretanto escrita a todos os clubes da Premier League pela beIn Sports, parceiro comercial da competição, cujo capital pertence ao não menos insuspeito emirado do Catar. Ora isto é que devia gerar uma reflexão.
A questão é que, fartos de Mike Ashley, o dono do clube e da cadeia de lojas de desporto Sports Direct – onde as queixas por atropelo aos direitos dos trabalhadores também são, por assim dizer, o pão nosso de cada dia – os adeptos do Newcastle United estão ansiosos por se passarem para o regaço de um dos países menos respeitadores dos direitos humanos no planeta. E, como o contrato da beIn com a Premier League se destina a direitos televisivos internacionais – que são torpedeados por pirataria de estado na Arábia Saudita – e não os afeta, esses mesmos adeptos não viraram o seu bullying para o grupo audiovisual catari, mas sim para a Amnistia Internacional, vista por eles como a verdadeira vilã desta história, por estar entre eles e o seu desejo de assistir ao crescimento do clube. “As novas contratações são mais importantes que os assassinatos, os direitos televisivos são mais importantes que os direitos da mulher e um sentido básico de humanidade é, em última análise, dispensável, se conseguirem escalar até à Liga Europa”, escreve Liew.
Ora a questão aqui nem é a de o futebol ter de dar o exemplo. Se o resto da sociedade tem negócios com os países que estão no topo da lista de proscritos das organizações defensoras dos direitos humanos, até aceito que me digam que não tem de ser o futebol a impedir a sua entrada no capital dos clubes. Tenho pena, mas aceito. Se o governo britânico continua a ser o principal fornecedor de armas à casa real de Saud, e esta depois as usa para patrocinar a guerra sem quartel no Iémen, por que carga de água é que depois não pode fazer algo tão mais pacífico como é comprar o Newcastle United? Se a sede do Comando Militar dos Estados Unidos no Golfo é no Catar, porque é que a FIFA não poderá lá realizar o Mundial’2022 ou o Paris Saint Germain não poderia pertencer ao emir? Só porque outros países do Golfo – Arábia Saudita à cabeça – já o acusaram de estar por trás do financiamento a grupos radicais islâmicos, como a Al-Qaeda ou o Daesh? E esta lista podia continuar com referência a vários oligarcas russos, que são donos de clubes nos campeonatos mais importantes da Europa e ao mesmo tempo acusados internacionalmente de crimes, que passam impunes em nome da cumplicidade e dos interesses comuns com Vladimir Putin. No fundo, o futebol é uma extensão da sociedade. E a sociedade está doente, porque fecha os olhos quando se trata de dinheiro.
Esse escrutínio, no entanto, o futebol precisa de o fazer – sendo que a pandemia é uma altura perfeita para começar. Há vários anos que o mercado do futebol está inflacionado pela entrada – e saída imediata, já limpinho… – de dinheiro que não é do futebol, em esquemas que passam pelas offshores e pelos paraísos fiscais que subsistem e são encorajados pelos governos. Acho, isso sim, que neste particular o futebol devia dar o exemplo, porque não tem nada a ganhar – o que não quer dizer que não haja no futebol quem ganhe… E embora não acredite nos benefícios de um futebol sem dinheiro – é uma arte como outra qualquer num mundo que é essencialmente capitalista – bater-me-ei sempre por um futebol com dinheiro limpo, com dinheiro rastreável, para que possamos todos deixar de ser enganados. Sobretudo os jogadores.
Parabéns pelo excelente artigo, por este ter tocado num ponto de enorme relevo no mundo do futebol e por ter abordado a questão mais interessante desta aquisição do Newcastle (não as compras de potenciais estrelas, mas a “sujidade do dinheiro” utilizado na compra do clube)!