O primeiro campeonato turco conquistado pelo Istambul Basaksehir é sinal do fim de uma hegemonia, mas também da forma como a política pode interferir no futebol. Proclamado como o clube de Recep Tayyip Erdogan, presidente da Turquia, o Basaksehir passou em poucos anos de equipa que saltava entre o primeiro e o segundo escalão a campeão nacional. A ligação às mais altas instâncias turcas faz com que o dinheiro nunca lhe falte. Por isso mesmo não é de estranhar que o clube já tenha contratado craques como Robinho, Adebayor, Clichy, Demba Ba ou Arda Turan. Ainda assim, o suporte de um regime ultranacionalista e conservador, bem como a falta de história quando comparado com os centenários Besiktas, Fenerbahçe e Galatasaray, fazem com que o clube praticamente nem tenha adeptos, num país plenamente conhecido pelo fanatismo com que acompanha o futebol. Por isso mesmo, o projeto levado a cabo no Basaksehir parece condenado a fracassar: se o objetivo passa por mudar uma cultura, mais do que vencer títulos, isso não está a acontecer.
O Basaksehir concluiu a Liga Turca com uma derrota no terreno do Kasimpasa (3-2). O clube já se tinha coroado campeão, mas a festa esperou por esta derradeira jornada, disputada num estádio que fica no bairro onde nasceu Erdogan e até tem o nome do presidente eleito em 2014 e reeleito em 2018, depois de já ter sido Primeiro Ministro entre 2003 e 2014. Nas celebrações é visível a presença no relvado de Bilal Erdogan, filho do líder do país. Assim, torna-se ainda mais difícil negar a ligação existente entre o Basaksehir e o governo, mais precisamente o partido AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento). Até as cores de ambos são as mesmas: laranja, azul e branco. E se quiser saber porque ninguém veste a camisola 12 no Basaksehir, é simplesmente por ter sido retirada depois de Erdogan (o pai…) utilizar esse número numa partida de inauguração do estádio Basaksehir Fatih Terim, em 2014.
Ao conquistar o campeonato turco, o carrasco do Sporting na Liga Europa (eliminou os leões nos 16 avos de final e ainda está na competição ao ter batido o FC Copenhaga por 1-0 na primeira mão dos oitavos) fez história no sentido em que foi apenas a terceira equipa a vencer o título além de Besiktas, Fenerbahçe e Galatasaray, que entre eles contam 54 ligas desde 1958/59: as outras duas foram Bursaspor (2010) e Trabzonspor (1976, 1977, 1979, 1980, 1981 e 1984). Para além disso, foi apenas a segunda vez em que nenhum dos três grandes de Istambul ficou nos dois primeiros lugares: esta época foi o Trabzonspor a chegar na vice-liderança e em 1980/81 tinha sido precisamente o Trabzonspor campeão e o Adanaspor a terminar na segunda posição.
Este primeiro título começou a ser desenhado em 2014, quando o clube que já contou com os portugueses Eduardo, André Geraldes e Miguel Vieira (ainda pertence à equipa, mas está emprestado ao Wolfsberger AC) surgiu no mapa. Mas recuemos um pouco mais no tempo, até 1990, quando foi fundado o ISKI SK, clube que pertencia a uma empresa municipal de distribuição de água. Depois de passar por divisões regionais, chegou ao segundo escalão turco e com isso mudou de nome para IBB (Istambul Büyüksehir Belediyesi). Em 2007 lá conseguiu chegar à elite do país, mas foi apenas em 2014 que deu um salto estratosférico, precisamente o ano em que Erdogan passou de Primeiro Ministro para Presidente do país. Foi aí que se deu a mudança de nome para Istambul Basaksehir. Este é o nome de uma urbanização em Istambul, descrita como ultraconservadora e seguidora rígida das regras do islamismo, alguns dos pilares da ideologia ultranacionalista posta em prática pelo atual governo.
Desde os anos 90, quando ainda era apenas presidente da Câmara Municipal de Istambul, que o próprio Erdogan tem investido quantias avultadas em Basaksehir. Nessa altura pensou em desenvolver “uma alternativa aos bairros que são casa do secularismo e dos grandes clubes de futebol de Istambul”, como referiu Daghan Irak, sociólogo na Universidade de Huddersfield, ao The National. Por isso mesmo, é uma urbanização moderna, com residências e jardins, um rio artificial e até tem vigilância apertada à entrada. Nada disto faz lembrar um ambiente futebolístico na Turquia e também a verdade é que num estádio com capacidade para 17 mil pessoas, a média de espectadores foi de 2,900 nesta temporada. Ao redor do estádio vê-se pouco relacionado com o desporto rei – há mais mesquitas do que bandeiras do clube, tal como relatou a agência Efe – e o mais provável é encontrar famílias a passear, num contexto onde é possível perceber a origem islâmica do povo, pois a grande maioria das mulheres utiliza o véu que caracteriza o partido de Erdogan, ou até mesmo uma burca, no caso das mais conservadoras.
Entre a estrutura e o suporte do governo
O sucesso repentino do Istambul Basaksehir assenta essencialmente em duas bases. “Porque fizeram bem as coisas e porque têm o apoio do governo”, referiu Bagis Erten, jornalista desportivo turco, em conversa com a Efe. Há mesmo quem vá mais longe e diga que o destino do partido de Erdogan será igualmente o do clube. “Penso que as pessoas consideram o Basaksehir como o departamento de futebol do AKP. Se o partido perder algumas eleições e o Erdogan perder a presidência, o Basaksehir vai sofrer”, atirou Alp Ulagay, jornalista radicado em Londres, em declarações ao The National.

No entanto, esta tese é rejeitada pelo Basaksehir. “No mundo real, o governo ajuda todas as equipas na Turquia. O presidente [Erdogan] gosta muito de futebol e o governo apoia os clubes através da construção de estádios e de incentivos fiscais”, salientou Mustafa Erogut, diretor-executivo do campeão turco, em declarações reproduzidas na publicação acima referida. O dirigente considera que o êxito do clube nasce da estrutura e que a prova disso está em 2018/19, quando ficaram apenas a dois pontos do título. “Se outra grande equipa turca perdesse o campeonato como perdemos na época passada, mudariam tudo, incluindo treinador, jogadores… tudo. Mas com a nossa estrutura corporativa, não tivemos essa pressão e ganhámos experiência com essa derrota”, disse Erogut.
Essa mesma estabilidade na estrutura deriva do facto do Basaksehir ser uma SAD pertencente a um grupo de acionistas, ao invés da maioria dos grandes clubes turcos. Enquanto nas restantes equipas de topo existe a pressão dos sócios por “sucesso instantâneo e grandes estrelas”, o caso do Basaksehir é bem distinto, apontou Patrick Keddie, autor do livro The Passion: Football and the Story of Modern Turkey. “É basicamente o único clube da Liga Turca com um interesse no longo prazo e também o que é mais bem gerido, por grande margem de distância. Por um lado, a Turquia é conhecida pelo fanatismo no futebol, mas isso por vezes pode levar a muitas decisões a curto prazo, que se revelam incorretas”, analisou ainda o escritor. Esta visão da liderança levada a cabo no clube, que tem Goksel Gumusdag como presidente, é também partilhada pelo jornalista Bagis Erten. “Estar localizado em Istambul é uma vantagem para atrair jogadores estrangeiros. Financeiramente, o clube foi sempre bem gerido: pagou sempre a tempo e horas aos jogadores, um ponto chave que não é assim tão habitual na Turquia.”
Apesar de toda esta estrutura bem montada, é impossível negar a ligação a Erdogan e já que se falou em Goksel Gumusdag, esses laços também passam pelo presidente do Basaksehir. É que para além de ser conselheiro do partido AKP em Istambul, Gumusdag é ainda casado com uma sobrinha de Emine Erdogan, a esposa do presidente de Turquia. A juntar a isso, a principal patrocinadora do Basaksehir é a Medipol, empresa de saúde proprietária de um hospital e de uma universidade privada. Ora, a Medipol é liderada por Fahrettin Koca, que é Ministro de Saúde da Turquia desde 2018. Esse patrocínio, assinado em 2015, foi um dos principais catalisadores do investimento levado a cabo no clube, que já viu chegar alguns nomes bem conhecidos do desporto rei. Além de que desde aí a equipa não mais ficou abaixo dos quatro primeiros no campeonato.
Este projeto do Basaksehir não é novidade. Erdogan já tinha pensando noutros clubes para incutir os seus valores de ideologia islâmica e conservadora. Como seria impossível realizar uma operação dessas em emblemas com a rica história de Besiktas, Fenerbahçe e Galatasaray, foram considerados outros com menos para contar. “Primeiro, tentaram com o Kayserispor (da Anatolia conservadora) e depois com o Kasimpasa (do bairro de onde é Erdogan), mas fracassaram. Então tentaram fazê-lo com um clube sem seguidores, sem história, mais fácil de moldar”, destacou o jornalista Bagis Erten. “Assim como o bairro [de Basaksehir], o clube é o projeto de Erdogan”, acrescentou o sociologista Daghan Irak.
A tentativa de mudar a cultura futebolística do país é condizente com a liderança incutida por Erdogan na Turquia. Para aqueles mais distraídos às notícias internacionais, depois de ser alvo de uma tentativa de golpe de estado em 2016, o presidente tornou o regime ainda mais rígido e apertado, com perseguições a quem considera ser seu inimigo político. Esta situação já afetou aquele que foi uma das principais figuras da seleção turca, Hakan Sukur. O ex-futebolista foi alvo de perseguição depois de ter abandonado o AKP em 2013, após escândalos de corrupção em que viu o partido estar envolvido, e teve mesmo de abandonar o país. “A hostilidade começou aí. A loja da minha mulher foi apedrejada, os meus filhos foram importunados na rua e eu fui ameaçado. Quando parti, prenderam o meu pai e confiscaram tudo o que eu tinha”, revelou Sukur à revista alemã Focus em janeiro. O pai do antigo avançado acabou libertado por sofrer de cancro, mas Sukur ficou sem bens materiais e agora é motorista da Uber nos Estados Unidos. Assim como Sukur, também Enes Kanter (basquetebolista dos Boston Celtics, na NBA) não pode entrar na Turquia, pois viu ser emitida uma ordem de prisão por alegada participação numa organização terrorista, teve o passaporte cancelado e o pai também preso. Tudo por ter lançado críticas à gestão de Erdogan no país.
Um projeto que não atrai adeptos
O facto de estar intrinsecamente conectado a um governo que lidera o país com punho tão cerrado pode ajudar igualmente a explicar a razão pela qual o Basaksehir não consegue atrair adeptos nem simpatizantes, mesmo a trepar na escada do futebol turco. Ninguém é indiferente à forma como o povo turco vive o futebol. Por isso se fala sempre em ‘inferno’ quando algum clube tem de ir jogar à Turquia. No entanto, nada disso se verifica no Basaksehir. Para além de um parco apoio de estudantes contestatários (em protesto contra a violência nos restantes estádios de futebol da Turquia), o partido AKP molda também jovens afiliados para serem adeptos do clube, mas isso não resulta sequer na ocupação de 20 por cento da capacidade do estádio.

Até o próprio diretor-executivo Mustafa Erogut reconhece que ganhar adeptos é uma batalha pouco propícia à vitória. “Penso que em cinco ou seis anos vamos ter uma boa base de adeptos, mas é mais difícil do que vencer o campeonato”, considerou, ao esperar ainda que os programas para as jovens comunidades atraiam jovens adeptos que não tenham ligações a outros clubes. No entanto, há quem pense que o modelo do Basaksehir é contrário à chegada de novos adeptos. “O Basaksehir não tem seguidores, não conseguiu criar uma cultura de futebol, nem é tão pouco um modelo para outros clubes, porque o seu êxito é suportado pelo governo, nem sequer tem um estilo de futebol próprio. Tem os melhores jogadores que se podem comprar no mercado, mas nada mais”, rematou o jornalista Bagis Erten.
Por isso mesmo, até faz sentido que o Basaksehir tenha sido campeão num momento em que atravessamos uma pandemia e não seja permitida a presença de adeptos no estádio. “O Basaksehir é um campeão que joga para estádios vazios. É a melhor altura para eles ganharem porque hoje todos os estádios estão sem adeptos. Nada na Turquia é normal agora, então é apenas mais uma anormalidade”, atirou o sociólogo Daghan Irak, em palavras similares às de Bagis Erten. “Com a pandemia, as restantes equipas estão todas na mesma situação em que o Basaksehir: e aí conseguiu ganhar-lhes”, referiu o jornalista.
Mudar a forma de ver o futebol num país que o vive tão intensamente pode ser visto como uma tentativa furada de ir em busca do impossível. “O Basaksehir está a tentar substituir uma certa cultura de adeptos, mas não importa quantos títulos ganhe, vai continuar a ser um projeto falhado, pois o projeto não é sobre vencer campeonatos, mas sim mudar a cultura”, referiu Daghan Irak. E nessa batalha, Erdogan não está a vencer.
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