A lei da violência no desporto esbarrou na oposição do Benfica, fundamentalmente porque prevê a obrigatoriedade de os elementos das claques terem de se sujeitar às regras que nela estão previstas para os Grupos Organizados de Adeptos. É verdade que o Benfica não tem sido o clube mais colaborante neste aspeto em particular – bem pelo contrário – e que não lhe assiste qualquer razão filosófica na argumentação que apresenta, mas os encarnados até estão do lado certo no que toca à questão mais polémica: os cartões de adepto, que nem em Inglaterra, no auge do hooliganismo, chegaram a avançar, sendo substituídos por medidas mais “user friendly”. Isso, porém, sabe a pouco.
A história conta-se rápido, desde a eclosão do hooliganismo na Inglaterra dos anos 70, alimentado pela crise, pela instabilidade social e pelas greves que valeram a Margaret Thatcher a alcunha de “Dama de Ferro”, à tragédia de Heysel, em 1985. Ali, antes da final da Taça dos Campeões Europeus, entre Liverpool e Juventus, uma carga de adeptos ingleses em cima dos italianos resultou em 39 mortes e na noção de que era preciso fazer alguma coisa para travar o fenómeno. Colin Moynihan, ministro do desporto britânico, engendrou então um plano de ataque ao hooliganismo que previa os cartões de identidade dos adeptos que quisessem comparecer a jogos fora, devendo todo o plano ser pago pelos clubes. Thatcher apoiou o plano e fez mesmo finca-pé nele, face à oposição dos clubes, da Liga e da Associação dos Espectadores de Futebol, que contrapunham a monitorização dos adeptos por circuitos fechados de TV nos estádios e foram atrasando a sua colocação em prática, entre outras razões porque alegadamente não conseguiam reunir os cinco milhões de libras que o governo não queria disponibilizar para a sua implementação.
Até que outra tragédia, em Sheffield, virou a mesa: em 1989, em Hillsborough, jogava-se a meia-final da Taça de Inglaterra, entre Liverpool e Nottingham Forest. O descontrolo total nas entradas levou a que a bancada do Liverpool enchesse em demasia, conduzindo à morte por esmagamento de 96 adeptos, que foram sendo empurrados contra as vedações pela turba que continuava a entrar. Na sequência da tragédia, o relatório Taylor – documento seminal para a entrada do futebol inglês na era moderna – levou, entre outras coisas, à construção de novos estádios, à proibição dos lugares em pé, à abolição das vedações entre bancadas e relvado e a que o governo deixasse cair a ideia dos cartões de adeptos, trocada por uma política de maior proximidade, entendimento e partilha aberta de informação entre clubes e as autoridades a propósito dos adeptos mais problemáticos. Era esse o segredo e é isso que falta em Portugal.
Portanto, se concordo com a oposição do Benfica aos cartões de adepto que o governo de esquerda quer implementar em Portugal, três décadas depois de nem o executivo de direita de Margaret Thatcher os ter conseguido impor numa Inglaterra onde os espectadores morriam às dezenas nos estádios, não aceito as razões apresentadas pelos encarnados nem as admito de bom grado vindas de um clube que tem mantido as suas claques à margem da lei que já existe. Dizer que o registo dos adeptos que fazem parte das claques contraria a constituição, por afetar o direito de livre associação, como argumentou a direção benfiquista, é sonso e é esquecer que os próprios clubes fazem recolha de dados ao aceitarem sócios ou venderem bilhetes de época, por exemplo. Serão inconstitucionais também?
Tal como em Inglaterra, o segredo não está em medidas tão draconianas como o cartão de adepto. Está na partilha sã e aberta de informação entre clubes, autoridades, Liga e uma associação de adeptos que dificilmente pode ser o simulacro que temos neste momento e que também precisa de um ambiente mais saudável entre direções de clubes para poder ver a luz do dia. E nessa parte da história, o contributo do Benfica foi sempre curto.