Por esta altura haverá poucos homens mais felizes do que Matthew Benham ou Rasmus Ankersen no Mundo do futebol. Nem mesmo o tipo mais reservado deste universo, como o é o dono do Brentford, foi capaz de evitar aplaudir de forma efusiva o triunfo da sua equipa. Afinal, o pequeno Brentford, uma formiga no ecossistema futebolístico de Londres, garantia ali a presença no play-off de promoção à Premier League, depois de vencer o Swansea, bem mais habituado a estes momentos. Em poucos dias foi a segunda vitória de Matthew Benham e Rasmus Ankersen. Dois homens que desafiaram as probabilidades e fizeram crescer dois clubes bem para lá das suas próprias fronteiras. O segredo estava nos números.
Ainda nem a cerveja dos festejos do título do Midtjylland tinha secado nos copos e na garganta dos foliões e já Benham tinha outro motivo para celebrar. Por Griffin Park, muito mudou desde o empresário inglês comprou o clube. O seu clube. Aquele que aos 11 anos já apoiava naquelas mesmas bancadas que agora fazem a despedida – o Brentford terá novo estádio na próxima época. E não se celebra pouco, em Griffin Park. O mais pequeno clube de Londres a competir nos quatro primeiros escalões do futebol inglês está às portas da milionária Premier League. Através de um modelo de recrutamento arrojado, Benham e Ankersen instituíram no Brentford um projeto desportivo que transformou por completo o clube e lhe deu uma dimensão como este nunca pensaria ter por esta altura.
Apesar de apresentarem sempre um dos orçamentos mais baixos da divisão, nunca os Bees ficaram abaixo dos 10 primeiros lugares no final da temporada, desde que regressaram ao Championship, em 2014. Há cinco temporadas consecutivas que o Brentford alcança um lugar no Top-10 e não só chegou mesmo aos play-off na temporada de regresso à competição, como ameaçou nova presença em todas as temporadas seguintes, conseguindo-a, por fim, em 2020. Saia quem sair, entre quem entrar, o modelo e a estrutura do Brentford estão tão bem construídos que não faz mais sentido pensar em “one season wonder” e continuar a subvalorizar os londrinos, nem mesmo se estes vencerem hoje o Fulham em Wembley e garantirem a terceira vaga de promoção rumo à Premier League.
Os sucessos de Brentford e Midtjylland em 2020 são dois exemplos dos resultados práticos de uma abordagem mais analítica nos projetos desportivos em clubes de futebol. Mas como funciona tudo isto? E de que forma pode beneficiar um clube, mais concretamente, deste tipo de abordagem? “Acho que temos de ter noção de que, a uma escala global, o futebol é cada vez mais liderado por uma classe dirigente que olha para o fenómeno de uma maneira menos apaixonada e mais racional. Toda a gente quer ganhar, mas toda a gente quer ganhar a vários níveis, e o lado do negócio é fundamental, também, para sustentar um crescimento a nível desportivo. O que a análise de dados oferece é uma componente muito mais factual no apoio às tomadas de decisão associadas a tudo o que envolve esse negócio, algo que os dirigentes que vêm de outros sectores já estão mais do que habituados e não concebem sequer viver sem”, diz-nos Hernâni Ribeiro, um dos homens responsáveis pelo portal GoalPoint que se dedica, precisamente, à análise estatística do fenómeno desportivo.
“Indo mais ao detalhe, no dia-a-dia de um clube isso pode ir desde um grande suporte a tomadas de decisão mais macro, como a contratação de um treinador, onde uma boa análise de dados te pode mostrar se os seus resultados recentes estão ou não de acordo que aquilo que as suas equipas efetivamente produzem, quais as suas ideias e se se enquadram ou não com a forma como tu achas que a equipa deve jogar, até coisas mais micro, como a preparação da estratégia para um jogo, porque hoje em dia é possível estudar quase tudo sobre os adversários, ou o planeamento das cargas de treino semanais a nível quase individual, de acordo com os índices físicos de cada jogador”, diz-nos ainda.
Será este um modelo desportivo mais apropriado a clubes de pequena e média dimensão? Serão eles quem mais beneficia no seu crescimento, abordando o futebol de maneira diferente? Ou também nos clubes de maior dimensão, elite das elites, como o Liverpool FC – cada vez mais embrenhado na análise estatística e recrutamento baseado no big data, como terão sido os casos de Virgil Van Dijk ou Alisson – é possível fazer a diferença tendo uma abordagem diferenciada?
“Ponto prévio: eu acredito que quem tem melhores jogadores ganhará sempre mais vezes. O segredo está em encontrar bons jogadores, a preços baratos no momento, mas que possam vir a ser rentáveis dentro e fora do campo. Isso será sempre mais útil para clubes de pequena/média dimensão, sendo o Brighton e o Brentford excelentes exemplos de um crescimento sustentado e muito apoiado nessa filosofia”, diz-nos Hernâni.
“Quando falamos de um nível mais alto, como o do Liverpool, apesar da abordagem ao mercado ser extremamente inteligente, falamos também em ganhar vantagem competitiva dentro do campo, aplicando a análise de dados ao estudo das bolas paradas, das transições ofensivas, etc. Isso já é bem mais difícil de conseguir e só é possível tendo um treinador que dá abertura para que o departamento de analytics, ainda muitas vezes visto como um conjunto de geeks, tenha peso ao ponto de influenciar o teu modelo de jogo e processo de treino. A melhor contração do Liverpool foi o Klopp, não só pelo treinador que era, mas também pelo treinador que se permitiu ser, apesar de tudo o que já tinha ganho. O futuro passará sempre por equipas técnicas cada vez mais multi-disciplinares, em que o treinador é a peça que une tudo, e será melhor quanto melhor for a fazer essa união”, explica ainda aquele que se considera responsável pelo algoritmo mais ofendido do país. Afinal, até jogadores profissionais lhe mandam mensagens a contestar o rating gerado pela GoalPoint quando este não bate certo com os seus cálculos feitos em Excel.
O homem que desafiou as probabilidades com o clube do coração
Detidos por Matthew Benham, também ele dono do Midtjylland – e talvez por aí se perceba o porquê de tantos dinamarqueses acabarem a jogar no Brentford -, este aproveitou os conhecimentos estabelecidos na área da recolha de dados estatísticos que desenvolveu com uma das suas empresas para os implementar na gestão do Brentford. De uma forma muito simples, transportou a filosofia “Moneyball” do baseball para o futebol e passou a basear o recrutamento do Brentford em dados estatísticos, levando para o clube jogadores que, a nível estatístico, mostravam fazer a diferença, mas que por alguma razão continuavam a passar ao lado da rede de observação de outros clubes.
Assim, o Brentford tem levado todos os anos para Griffin Park jogadores a baixo custo, jogadores subvalorizados, que por manterem um rendimento elevado numa montra mais visível têm permitido ao Brentford encaixes financeiros significativos. Vejam-se os casos de James Tarkowski, Andre Gray, Moses Odubajo, Scott Hogan, Jota e John Egan, por exemplo. Todos contratados por menos de cinco milhões de Euros (e não são valores individuais, é mesmo o total dos seis jogadores) e vendidos pelo Brentford por mais de 40 milhões de euros. Mais, é mesmo possível montar um onze de jogadores que passaram recentemente pelo Brentford que, ao todo, custaram cerca de 7 milhões de Euros ao clube e acabaram vendidos por mais de cinquenta milhões. Curiosamente, muitos deles, talvez com exceção de Tarkowski e Andre Gray, sem nunca voltar a replicar o bom nível que apresentaram em Griffin Park. Neal Maupay é também um bom exemplo disso: foi contratado ao AS Saint-Étienne por dois milhões de Euros e vendido dois anos mais tarde ao Brighton & Hove Albion por 22 milhões. Esta época fez dez golos na Premier League.
Por esta altura talvez não haja clube em Inglaterra mais bem gerido do que o Brentford. Cientes da sua dimensão e das limitações que enfrentam por ser um pequeno clube comunitário no meio da capital inglesa, e onde a concorrência é feroz, os Bees tiveram noção que para crescer tinham de fazer diferente, pensaram fora da caixa e não tiveram qualquer problema em tomar decisões arrojadas. Como a da formação, por exemplo. Esqueceram a academia e as camadas jovens por necessitarem de um grande investimento e por não conseguirem captar os melhores talentos devido à concorrência dos restantes e significativamente maiores e mais populares clubes londrinos e focaram todas as atenções na equipa principal de futebol. Mas até aí o Brentford fez diferente.
Com um dos trios ofensivos mais badalados da atualidade do futebol inglês, é praticamente certo que entre Saïd Benrahma e Ollie Watkins o Brentford venha a fazer no mínimo quarenta milhões de Euros durante o próximo mercado de transferências. O mesmo Benrahma que andava perdido no OGC Nice, emprestado ao LB Châteauroux e que não custou, sequer, dois milhões de Euros ao clube londrino. O mesmo Ollie Watkins que chegou a Griffin Park oriundo da quarta divisão inglesa, do Exeter City, por dois milhões de Euros. Vender não é um problema para o clube. É, aliás, razão do seu sucesso. Perceber o momento certo para o fazer, identificando o ponto de valorização máxima de um jogador, é o grande segredo do clube. E, isso, o Brentford faz como nenhum outro no Mundo.
Nada alheio a este constante arriscar do clube e tomada corajosa de decisões está o facto de Matthew Benham ter construído o seu passado e fortuna como trader profissional, tal como Tony Bloom, dono do Brighton & Hove Albion, por exemplo. Licenciado em física pela Universidade de Oxford e antigo vice-presidente do Bank of America, Benham entrou no mundo das apostas desportivas em 2001. Três anos depois montou a sua empresa, a SmartOdds, que passou a reunir dados estatísticos e a desenvolver algoritmos que permitem prever mais facilmente o desfecho de um jogo de futebol. Os mesmos dados que passou depois a utilizar quer em Londres, quer na Dinamarca e que alavancaram o sucesso dos dois clubes que detém.
Em 2020, o Midjtylland alcançou o seu terceiro título nacional desde 2015. Formados em 1999, o clube de Herning não tem um largo historial no futebol europeu, mas é um clube bem diferente desde que Matthew Benham o comprou em 2014 a pedido de Rasmus Ankersen então diretor desportivo do Brentford e amigo de longa data de Benham. Afinal, se Benham detinha o clube do seu coração, porque não comprar o clube do coração do seu grande amigo? Desde aí tudo mudou. O Midtjylland venceu esta temporada o seu terceiro título em cinco anos aguardando ainda a primeira taça nacional apesar de já ter chegado a quatro finais operando sempre num orçamento muito mais baixo do que o do seu grande rival pelo título FC Copenhaga.
Tal como no Brentford, o segredo do sucesso do Midjtylland é simples de explicar e está também ligado aos dados recolhidos pela SmartOdds e ao desenvolvimento de algoritmos. Também o Midtjylland substituiu os métodos tradicionais de scouting baseados na pura observação de jogadores e, muitas vezes, condicionado pelo bom ou mau conhecimento dos seus observadores e introduziu a análise estatística como vértice fundamental na escolha dos melhores jogadores para reforçar as suas ambições. Tal como no Brentford, jogadores que apresentavam rendimentos elevados em determinados contextos, mas que continuavam a passar ao lado da rede de observação de clubes de maior dimensão.
“Se eu quero saber quão bom é o jogador quero falar com alguém que tenha visto esse jogador jogar pelo menos cem vezes e em todas as condições possíveis. O problema que acontece regularmente no futebol é que muita gente se limita a ver um jogador durante quarenta minutos e decidem ser videntes”, explica Benham, para quem a ideia de que são os resultados que ditam o sucesso ou o insucesso de uma equipa não faz sentido. A sua performance em campo sim.
“Não me importa que uma equipa ganhe ou perca, que marque ou não marque porque há sempre aquilo que chamamos de ruído estatístico. Eu quero olhar para os número e qualidade das oportunidades que a equipa vai criando. Se quiser analisar um avançado decididamente não vou olhar para o seu recorde estatístico em termos de golos. Para mim o que importa saber é como é que a equipa se comporta coletivamente, ofensiva e defensivamente, dentro de um contexto de performances individuais”, explica Benham numa das poucas entrevistas que lhe são conhecidas.
Uma nova forma de abordar o mercado
Pela mão de Matthew Benham e Rasmus Ankersen, o homem que põe em prática as ideias do anterior, Brentford e Midtjylland são dois clubes que estão a ajudar a mudar o paradigma do recrutamento e planeamento desportivo à escala planetária. Exemplos máximos de uma nova forma de trabalhar que começa cada vez mais a desligar o achómetro e o olhómetro na hora de contratar jogadores. Com isso, os clubes cresceram e passaram a faturar em vendas valores com os quais talvez nunca tivessem sonhado. Mas, em concreto, como funciona tudo isto?
“Há muitas formas de usar os dados e até há muitas que são erradas, portanto o seu uso, por si só, não é receita vencedora à partida. Acima de tudo é necessário estar muito bem definida a estratégia do clube e o perfil de jogador que se pretende, e que isso esteja presente a 100% entre todos os elementos da estrutura de futebol profissional. Sabendo exatamente o que se procura, até podemos acabar com uma ‘shortlist’ bem menor, mas também é muito mais curta a probabilidade de errar. Atualmente a profundidade dos dados é tão grande que nos permite caracterizar bastante bem um jogador, daquilo que faz mais vezes ao que faz melhor, e até alguns traços de personalidade (dentro do campo). Importa dizer que, tal como numa análise observacional, é muito importante não ignorar o contexto onde o jogador está inserido, e esse é um erro vastas vezes cometido. 90% de eficácia de passe no Barcelona não é igual a 90% no Eibar”, adverte Hernâni.
Qual é o segredo do sucesso, então? “O segredo está em conseguir fazer a transposição entre aquilo que um jogador é, e aquilo que um jogador pode ser, inserido no contexto para o onde o queremos trazer. Cumpridos esses requisitos, é incrível a vantagem competitiva que se pode retirar dessa utilização. Penso que a análise vídeo e a análise ao vivo deverão existir sempre, mas, na minha opinião, apenas numa segunda fase, como forma de validação”, explica-nos.
O sucesso de clubes como Brentford ou o Midtjylland, bem como do Brighton, AZ e até Liverpool FC, cada um à sua maneira e escala, mas sempre alavancado com base num processo e projeto desportivo indissociado da análise estatística mais profunda e sempre subindo o seu nível de patamar em consequência disso torna complicado perceber porque não se tornou este tipo de abordagem mais massificado. Será este um modelo dispendioso? Ou estaremos somente perante falta de visão e incapacidade de modernização das equipas mais tradicionais e, em especial, em Portugal, fruto de uma classe dirigente sem capacidade para pensar fora da caixa?
“Não me parece que seja de todo uma abordagem cara, sobretudo tendo em conta o retorno que pode ter. Voltando ao mercado, quanto é que um clube pode poupar em viagens dos seus scouts, muitas vezes perfeitamente inúteis, se tiver um recurso competente, dentro ou fora da estrutura, capaz de fazer essa primeira ‘peneira’ recorrendo à análise dos dados estatísticos? Os scouts são importantes, mas não podem estar em todo o lado ao mesmo tempo. Com o apoio dos dados há a possibilidade de acompanhar mais campeonatos, de identificar possíveis alvos mais cedo, de analisar mais jogos do mesmo jogador, e tudo isso se converte numa margem de erro bem menor na hora de contratar”, assinala Hernâni Ribeiro.
Os tempos, porém, diz-nos, são de mudança. “Apesar de ainda haver muita margem de evolução, sobretudo em Portugal, sinto nos últimos cinco anos um aumento gradual da curiosidade e interesse em relação ao tema, e acho que os exemplos referidos, assim como outros menos conhecidos, vão rapidamente gerar ainda mais vontade de se explorar a sério este caminho. Os jogadores de hoje, que serão os treinadores de amanhã, cresceram com isto e, muitos deles, já o veem como uma ferramenta fundamental (e justa) na avaliação do seu próprio rendimento. Será lógico e natural que o abracem quando derem o próximo passo, e aí a questão já não será o seu uso, mas sim como ser diferenciador, usando”. Aguardemos, então.
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Excelente artigo. Parabéns ao jornalista, João Pedro Cordeiro, por estar na cristã da onda.