O futebol português está hoje demasiado virado, na sua dimensão analítica, para o início da organização ofensiva. Como tudo o resto é muito mais difícil de analisar, quase parece que se convencionou que quem sai curto joga bem e quem sai longo joga mal. Pois bem, tenho uma novidade para vos dar: isso não é verdade. Cada forma de jogar tem de ter correspondência nas caraterísticas dos jogadores que estão em campo, naquilo que eles treinam ao longo da semana e numa dimensão estratégica que é muito mais complexa do que esta análise maniqueísta. Como nos provou o domingo futebolístico.
O tema suscita-me logo duas memórias da minha infância. Uma, de César Luís Menotti, no filme brasileiro acerca do Mundial’78, a repetir insistentemente uma mesma expressão: “A tocar, a tocar!”. Outra, mais ou menos da mesma altura, das idas aos estádios e do momento em que o guarda-redes de qualquer equipa visitante tomava balanço para dar um chutão para a frente, na marcação de um pontapé de baliza, altura em que o coro dos adultos entoava o obrigatório “Filho da…”, deixando o remate da frase para o instante do pontapé. Não é difícil decidir qual dos dois é mais digno, pois não? O romantismo do futebol de toque de Menotti, inspiração de todos os poetas da bola dos tempos atuais, ou o grosseirismo das multidões sempre prontas a ofender quem tem cores diferentes. Agora é preciso compreender que o Mundo é feito das duas coisas.
Não sei se foi Cruijff ou Valdano quem escreveu uma vez que bater um pontapé de baliza mais longo é uma burrice, porque desde logo se está a pôr em risco a bola, que de todos é o bem mais precioso que há numa partida de futebol – ou de rugby, que ainda ontem debatia isso com um amigo, acerca do exagero de jogo ao pé que foi o África do Sul-Gales, face ao que tínhamos visto na outra meia-final, entre Inglaterra e Nova Zelândia. A bola é tão preciosa num jogo, que devemos querer tê-la sempre? Quase. Mas isso não quer dizer que não haja equipas que sejam mais fortes sem ela. Que não possam aperfeiçoar a arte da pressão e da recuperação das segundas bolas a tal ponto que não lhes seja mais favorável bater longo e ir em busca do ressalto, recomeçando mais à frente, sem tanto embaraço e perigo possível para a sua própria baliza.
Como disse no início, hoje, no futebol português, parece que só joga bem quem opta por sair curto. E isso não é verdade. Sim, o sair curto tem vantagens óbvias e que vão para lá de se poder manter a posse. Entra-se com mais qualidade numa segunda fase de organização e isso, à partida, permite mais e melhores opções na entrada em zonas de criação. Agora, há que saber fazê-lo. O CD Tondela, por exemplo, já o trabalha há meses, com Natxo González, e não cometeu erros, embora depois também só tenha sido capaz de criar perigo para o Benfica em lances de recuperação e rápida transição ofensiva, transformados em contra-ataques, que não têm nada a ver com a saída elaborada a três. O Sporting, que com Jorge Silas começa a querer jogar assim, já perde menos bola no início do processo, mas ainda o tem tão perro que mesmo com adversários não particularmente adiantados no terreno, também só se torna perigoso em contra-ataque – ao Vitória SC marcou dois golos em transição e um de bola parada. E do próprio FC Famalicão, que chegou ao topo da Liga a jogar assim – ainda que os números provem que é muito mais perigoso em transição –, não pode certamente dizer-se que não sabe fazê-lo, mas a verdade é que ontem entregou ao FC Porto três bolas que deram golo e motivaram a mudança de líder.
Perante este cenário, há muitas reflexões a fazer. Muitos disparam logo que os famalicenses entregaram o jogo – e regra geral são os mesmos que não viram nada a não ser prontidão de reação e inteligência de Pizzi no lance em que recuperou a saída curta de Anthony Lopes e fez o golo da vitória do Benfica frente ao Lyon, na Liga dos Campeões. Outros aproveitam para dizer que esta coisa do “sair a jogar” é uma parvoíce tal que só pode dar asneira. Eu discordo de todos e aproveito para me centrar na dimensão estratégica do jogo: sabendo que o adversário ia sair a jogar assim, Sérgio Conceição mudou para um 4x2x3x1 que deixava quatro homens ali prontos a contrariar a saída de bola do adversário (Soares, Díaz, Otávio e Corona). Muitas vezes nem é preciso pressionar, porque a pressão acarreta o risco de desorganizar: basta estar lá e condicionar.
O jogo tem momentos diferentes (defesa e ataque, mais as respetivas transições) e duas equipas em campo. E tudo nele resulta da conjugação desse todo. Se olharem mais para isso e menos para as populares teorias da conspiração vão percebê-lo melhor.