A Covid-19 tardou em chegar ao Burundi, mas mesmo com o aparecimento dos primeiros casos confirmados, aquele país africano continua com a rotina habitual. Isto aplica-se também ao futebol, com os dois principais escalões do campeonato a seguirem a marcha. Esta pequena nação do eixo central de África tem sobre si uma atenção e visibilidade que nunca seria suposto acontecer, mas que é possível por ser apenas um de quatro países onde o futebol não parou, tal como a Bielorrússia, a Nicarágua e o Tajiquistão. Os responsáveis do Burundi acreditam que a população está protegida “pela vontade de Deus”, embora haja quem reze para que não aconteça um massacre.
No que diz respeito ao desporto rei, quem se recusar a jogar irá sofrer pesadas consequências e é por isso mesmo que os jogadores e também treinadores têm receio de levantar a voz em sentido contrário. Isso explica que não se encontrem opiniões discordantes vindos dos protagonistas no relvado. Após reunião com os emblemas dos dois primeiros escalões, a federação de futebol do Burundi anunciou que a competição ia prosseguir, com algumas medidas preventivas, como o impedimento de festejos coletivos após golos marcados ou de apertar as mãos de árbitros e adversários. Neste momento, faltam disputar três jornadas na liga principal, liderada pelo Le Messager Ngozi (quatro pontos de avanço sobre o Musongati, que tem uma partida a menos). No passado fim de semana, o líder e a equipa mais titulada (Vital’O FC) empataram sem golos, com as bancadas repletas de adeptos.
Thaddée Ndikumana, ministro da saúde, procedeu à recomendação de que o futebol continue, ainda que com “medidas preventivas, como lavar as mãos e medir a temperatura dos espetadores antes da sua entrada nos estádios”. Na base dessa reunião, que teve lugar durante o fim-de-semana, o presidente de uma das equipas presentes, preferindo ficar sob anonimato, revelou à agência ‘France-Presse’ que o presidente da federação lançou uma ameaça: “qualquer clube que opte por não jogar será penalizado, sofrerá várias sanções”.
Embora tenham surgido algumas opiniões favoráveis à interrupção, elas pecaram pela escassez e o receio acabou por falar mais alto, tal como apontou ainda esse mesmo presidente. “Algumas vozes, muito minoritárias, tentaram explicar os fundamentos de suspender o campeonato como em quase todo o mundo. Uns apoiaram a decisão vinda de cima e outros tiveram medo de expressar o que pensam”, lamentou, em declarações reproduzidas pela agência ‘Lusa’.


De recordar ainda que, a 30 de março, quando não havia casos de Covid-19 confirmados no país, a presidente da Associação de Jornalistas Desportivos no Burundi referia que ninguém tinha pânico ou medo da pandemia. “Sentimos que estamos seguros. Todos os jogadores e as equipas estão disponíveis e a jogar como normal. Para aqueles que estão aqui no país, não temos problemas. Todos concordámos de que deveríamos continuar com as nossas atividades. Não há medo, nem pânico”, disse Liliane Nshimirimana à ‘ESPN’, há uma semana. Agora que o vírus já chegou ao pequeno país africano parece que esse sentimento geral mudou de direção… pelo menos no que concerne a futebolistas e dirigentes de alguns clubes, ainda que poucos.
A fé é inabalável, mas as precauções são tomadas
Nas altas instâncias, é a fé que reina e leva à crença de que a Covid-19 não se irá alastrar pelo Burundi. “Quero encorajar-vos. A pandemia tirou várias vidas em outras partes do mundo, mas Deus tem protegido o Burundi desse vírus. Até falei com quem está em quarentena, mas todos eles disseram que estão muito bem. Outros países estão em confinamento, mas Deus decidiu que o povo do Burundi deve dançar e rejubilar a aproveitar a vida”, referiu recentemente Evariste Ndayishimiye, secretário-geral do partido na presidência, que nega a existência de uma pandemia no país. No país com apenas 27 834 km² de área, mais pequeno do que, por exemplo, a região do Alentejo, mas com mais população do que Portugal (cerca de 12 milhões), os dois primeiros casos de coronavírus foram anunciados na semana passada. As publicações locais chegaram ainda a reportar a morte de três pessoas devido a Covid-19, mas o governo não se pronunciou sobre o assunto.


“Quando o coronavírus apareceu, alguns disseram que o clima do nosso país não poderia permitir que esse flagelo sobrevivesse. É por isso que tudo continuou a funcionar no Burundi. Acabámos de perceber que essa informação não era verdadeira. E que o Burundi é tão vulnerável quanto os países contaminados, mas provavelmente em menor grau”, começou por analisar Patrick Sota, jornalista independente e blogger, em declarações ao jornal ‘A Bola’. “O futebol está a ser jogado, mas acho que as autoridades públicas não pensaram que essa pandemia terrível e implacável também nos atacaria. Atualmente há dois casos confirmados. E um terceiro de uma rapariga está em averiguação. É importante saber tudo com exatidão. Se os casos de pessoas infetadas aumentarem, acho que devemos ficar confinados para evitar um massacre. Espero que não se chegue lá”, prosseguiu.
No entanto, engana-se quem pensa que o facto de o futebol e as restantes atividades continuarem é sinónimo de que o Burundi não tomou as devidas precauções. Pelo contrário até. Foi dos primeiros países a apelar para o adiamento dos jogos de qualificação para a Taça das Nações Africanas, agendados para março. Para isso, recusaram convocar jogadores que atuem na Europa para os duelos com a Mauritânia. “A medida é tomada com base nos 14 dias de quarentena necessários para entrar no Burundi após ter estado na Europa”, podia ler-se no comunicado da federação a 13 de março.
A juntar a essa quarentena obrigatória para quem venha de países afetados, apenas aviões de carga são permitidos de aterrar no Aeroporto Internacional de Bujumbura. As medidas de prevenção são também efetuadas por toda a parte. “Onde quer que vamos, os antissépticos são disponibilizados e isso promove a higienização das mãos. Vê-se em estádios, lojas, bancos públicos e privados. Todos os serviços privados e estaduais. Os meios de comunicação estão a sensibilizar tanto quanto possível as pessoas a adotarem um comportamento consistente em relação a esta terrível doença”, referiu Sota ao diário ‘A Bola’.
O receio de quem olha de fora
Apesar da voz de jogadores no Burundi não se fazer sentir, há quem esteja a jogar fora que mostra clara preocupação pelo facto de o futebol não parar. Laudit Mavugo representou o Burundi na Taça das Nações Africanas em 2019 (a primeira na qual o país participou) e está em quarentena na Zâmbia, onde joga e o campeonato está suspenso. O avançado considera que as autoridades não estão a tomar as decisões corretas ao permitir a continuação de atividades, assim como os aglomerados de população. “Dizem que não há pandemia lá, mas não penso que assim seja. Realmente, é chocante, e claro que estou com receio pelo meu país. Ainda tenho família lá. Todos dizem que Deus vai proteger o país, mas não é uma boa razão para continuar a jogar”, considerou Mavugo em declarações à ‘ESPN’ na semana passada.


Jules Ulimwengu partilha dessa mesma opinião. O jovem de 20 anos joga atualmente na Guiné-Equatorial e até estava preparado para rumar ao Shaanxi Chang’an, do segundo escalão chinês, mas o negócio foi por água abaixo com a propagação do vírus no país asiático. “Aqui o campeonato parou. Não sei porque é que o futebol no Burundi está a prosseguir e não concordo, mas honestamente não sei”, referiu o jogador à ‘ESPN’, demonstrando também preocupação pela família, mas impedido de regressar ao Burundi a partir da Guiné-Equatorial, devido às restrições em ambos os países para viajar.
Para além do futebol, a política também não conhece paragem neste país que é um dos mais carenciados do mundo. Aliás, as eleições presidenciais estão mesmo agendadas para maio e não há nada que indique deixarem de se realizar. “O Burundi organizará em breve eleições presidenciais. Maio está a chegar. Os períodos pré-eleitorais são frequentemente marcados por tensões. O clima é calmo, por enquanto. Obviamente, há rumores que podem surgir de tempos em tempos e algum envenenamento da opinião. Mas cabe a nós fazer um esforço de reflexão para dissociar o improvável do provável”, comentou Patrick Sota. A campanha eleitoral segue, assim, sem obstáculos, com a economia e a parte social do país sem diferenças de assinalar.
O talento é superior aos meios e organização
A Liga do Burundi foi criada em 1962/63 e conta atualmente com 16 equipas, todas elas a lutar por uma vaga na Liga dos Campeões Africana. O Vital’O FC é a equipa mais titulada do país com 20 campeonatos no palmarés, embora esteja já há três temporadas sem levantar o troféu. O campeão em título é o Aigle Noir, com o Le Messager Ngozi e o LLB Académic FC a terem saído vencedores das edições anteriores.
Os futebolistas do Burundi não são propriamente conhecidos – talvez Berahino seja aquele de que mais se ouviu falar (passou por West Bromwich, Stoke City e joga pelos belgas do Zulte Waregem) -, mas quem tem conhecimento local acredita que o talento existente é superior à capacidade das organizações. “Os talentos existem no Burundi, há uma média de 12/15 jogadores que costumam sair para a Europa, outros campeonatos africanos e Estados Unidos, mas os meios e a organização não. São inversamente proporcionais ao potencial que temos no nível individual dos jogadores”, destacou Patrick Sota. Fica agora por saber se a fé em Deus e no catolicismo das autoridades do país coincidirá com um número curto de casos de Covid-19 e o campeonato concluído, ou se ainda acabará mesmo por ter de ser suspenso.


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