Nem Jorge Jesus conseguiu esconder a surpresa quando aproveitou para beber água à espera da pergunta que aí vinha. O introito feito pelo repórter do JN que acompanhou a vitória do Flamengo sobre o CSA mostra muito do que está errado no ambiente do futebol nacional – e, no entanto, os protagonistas deste admirável mundo novo, onde só o engajamento vale, são capazes de achar que aquele repórter é que tem razão: “ao menos este assume”. Esquecem que o jornalismo tem várias missões e que uma delas é precisamente a de não revelar, nem por palavras nem sobretudo por ações, o lado onde está o coração. Não por dissimulação, mas por dever de profissão. Chama-se a isso muitas coisas, desde isenção a profissionalismo, e deve estar no código de conduta de todos os que andam no futebol, de treinadores a jogadores e árbitros, passando também pelo jornalista. Que, como dizia repetidamente um velho mestre, “não tem clube”.
O aparecimento de um jornalista que diz, em conferência de imprensa, a Jorge Jesus, que é “do Sporting”, e que depois passa a falar na primeira pessoa do plural, atirando que o primeiro campeonato do técnico em Alvalade “foi-nos roubado”, para terminar a dizer que “temos muitas saudades suas em Portugal” até pode ter sido imaginado como estratégia de criação de empatia com o homem a quem se vai fazer uma pergunta complicada, mas não deixa de ser contra tudo aquilo que a profissão recomenda. No entanto, há que admiti-lo, é algo que é fruto do ecossistema geral do futebol português no século XXI, um ambiente onde não se admite que possa haver alguém não engajado – e os programas televisivos de comentadores-adeptos deram uma grande contribuição para que tenhamos chegado onde chegámos. A ponto de aquilo que na verdade é uma degenerescência do sistema ou fruto de inexperiência e deslumbramento com o “barulho das luzes” ser de repente visto pelos destinatários do nosso trabalho como modelo de comportamento. Basta circular pelas caixas de comentários ao vídeo deste momento nas redes sociais para o ver.
Já várias vezes ouvi e li que os jornalistas deviam ser obrigados a fazer uma declaração de interesses, onde diriam qual era o clube de cada um – e não posso ser mais contra isso. Claro que os jornalistas – como os árbitros, os treinadores ou os jogadores – têm um clube favorito. E quem diz clube diz partido político, banco, operador de televisão, marca de carro… Só não devem é deixar que isso transpareça. Nem sem querer, nem muito menos de forma tão voluntária e despropositada como esta. Mais: nem no exercício da profissão nem sequer na vida privada – e isto serve para aqueles jornalistas especializados em política ou economia que acham que, de folga, podem estar de cachecol ao pescoço nas tribunas VIP dos estádios, convidados pelas direções dos seus clubes de coração. Isto, para mim, é válido para todos os agentes que andam no futebol e, quanto mais não seja, serve para evitar confusões como a que se vive neste momento em Itália, onde os treinadores de Juventus, Inter, Milan e SSC Nápoles são todos eles adeptos confessos de clubes rivais. Curioso é que essa situação até já aconteceu em Portugal no final da década passada, mas na altura nem causou burburinho, provavelmente porque ainda não havia tanto lixo futebolístico a contaminar a programação televisiva ou tanta influência das redes sociais na sociedade.
Tenho por aqui “fregueses” que já me acusaram de sofrer por qualquer dos três grandes e a verdade é que, desde que nos limites do respeito, isso até me deixa feliz, porque é sinal de que continuo ao meio do triângulo e de que estou a fazer bem o meu trabalho. Em tempos, quando era mais jovem e o ambiente no futebol português era menos tóxico, ainda cheguei a revelar numa entrevista qual era o clube de que gostava, mesmo deixando desde logo claro que nada disso afetava o desempenho da minha profissão. Hoje já não o faço. Porque se é claro que os jornalistas – tal como os jogadores, os treinadores ou os árbitros – devem ser capazes de desligar o “chip” quando trabalham, é ainda mais verdade que hoje em dia, até mesmo na minha vida pessoal, já não há nada no futebol a não ser a poesia de uma boa jogada que me acelere o batimento do coração. E o meu dever enquanto profissional continua a ser o de distanciamento e o da responsabilização: manter-me rigorosamente ao meio do espetro clubístico e não dizer nada que não possa provar.