A estreia do Flamengo no Mundial de clubes (hoje, 17h30, na RTP1) faz lembrar o “Dia da Marmota”, com Jorge Jesus a desempenhar o papel de Bill Murray e a enfrentar uma cadeia de acontecimentos que se repetem sem parar. Quando hoje apanhar pela frente a mesma equipa do Al-Hilal que liderou antes de rumar à América do Sul, o treinador português vai repetir a experiência que viveu à chegada ao Sporting, quando teve pela frente o Benfica com o qual se tinha sagrado campeão. E, ainda que o folclore popular se centre sempre mais em soundbytes a que Jesus não consegue fugir – como aquele em que recordou que foi ele que contratou os quatro avançados do adversário e que Gomis até lhe dedicou o golo da vitória na ronda anterior – o fundamental é entender o que é preciso para romper a cadeia de eventos.
Não tenho muitas dúvidas de que o Flamengo vai vencer o Al-Hilal. Porque Jesus conhece a equipa adversária de trás para a frente – como conhecia aquele Benfica que lhe apadrinhou a estreia de verde-e-branco – mas fundamentalmente porque tem muito melhores jogadores. No final, até poderá repetir com Gomis a palmada carinhosa na nuca que deu a Jonas naquela Supertaça, que mesmo que o francês reaja mal – como reagiu então o brasileiro – depois vão acabar por fazer as pazes e por se elogiar mutuamente. A questão fundamental, no entanto, tem a ver com o que vem a seguir. O jogo com o Liverpool FC (que também deve ganhar ao Monterrey, amanhã) e o ano de 2020. Ficará Jesus no Flamengo? Ou aproveitará a euforia para sair em alta, mantendo a imagem de “escolhido”, que apareceu para dar alegrias à nação rubro-negra, não se sujeitando aos insucessos que possam suceder já na Taça Guanabara (a primeira fase do campeonato carioca), no início do ano?
O sucesso de Jesus na América tem a ver com a sua indiscutível competência e com um elenco que era superior ao dos adversários – e melhor ainda ficou com a inclusão dos veteranos laterais Rafinha (ex-Bayern) e Felipe Luís (ex-Atlético Madrid), ambos estreados depois da chegada do treinador português. Mas é preciso que todos aqui entendam que a vitória na Libertadores não é garantia, por si só, de entrada num grande campeonato da Europa. Uma vitória num Mundial, rompendo a hegemonia europeia, já pode ser outra música. Mas nem isso quer dizer que Jesus tenha de mudar. O que pesa mais, para ele, neste momento? O que pode levá-lo a mudar?
À partida, identifico três fatores.
Primeiro, a noção de que se for campeão do Mundo já não há mais nada que ele possa ganhar no Flamengo. E de que, pelo contrário, tem ali muito a perder. Mas também havia pouco que, realisticamente, ele pudesse fazer a mais no Benfica e, no entanto, foi Vieira quem o afastou e o empurrou para Alvalade, em 2015, quando quis definir onde ele ia treinar a seguir, até com promessas de que um dia ia chegar ao Paris St. Germain.
Depois, a distância de família e amigos. Ora, este é um fator mais problemático. Jesus tem 65 anos, idade de querer estar rodeado daqueles de quem gosta e que mais gostam dele e isso não é possível do outro lado do Atlântico. Mas este nem sempre foi um fator importante para um homem viciado e obcecado pelo trabalho, que inclusive se baldava às férias de família para pode continuar a ver futebol pela noite dentro.
Por fim, uma ideia demasiado elevada de si mesmo, que o leve a olhar para o Flamengo-Liverpool como se de um Jesus-Klopp se tratasse e a achar que se ganhar ao alemão não tem de estar exilado no Brasil e tem lugar numa das melhores equipas do futebol europeu. Ora eu não tenho nenhuma dúvida acerca da competência de Jesus no trabalho de campo, na visão tática e estratégica de jogo. Nesses aspetos, ele está entre os melhores do Mundo. Mas a sua liderança é muito baseada na ligação que cria – ou não – com os jogadores e, para que essa ligação exista, a comunicação é fundamental.
Jesus quererá certamente testar-se a si próprio numa equipa com aspirações a ganhar um dos grandes campeonatos europeus – e ninguém pode levar-lhe a mal. Mas tal como Bill Murray no Dia da Marmota, tem de olhar para dentro antes de estar em condições de dar o salto para o futuro.