Um norte-americano a fazer história no Velho Continente. Assim foi a época de Jesse Marsch. Com a conquista da Liga Austríaca, ao comando do RB Salzburgo, tornou-se no primeiro treinador proveniente dos Estados Unidos a vencer um campeonato top-12 do ranking da UEFA. Foi também, além disso, o primeiro a treinar um clube na Liga dos Campeões. Apesar de este ser o sétimo título consecutivo do RB Salzburgo, Marsch conquistou-o num momento em que o clube perdeu metade da equipa titular do ano anterior e numa época durante a qual até ficou sem a principal estrela, o jovem prodígio Haaland, que o técnico conduziu ao estrelato. A carreira de Marsch tem sido dedicada ao projeto desportivo da Red Bull, com passagens por Nova Iorque e Leipzig. transformando a imagem dos Estados Unidos no futebol europeu e ganhando fama após uma palestra ao intervalo em Liverpool que resultou num dos melhores jogos desta Liga dos Campeões.
Foi no passado domingo que o RB Salzburgo confirmou o título, depois de um triunfo por 3-0 contra o TSV Hartberg. Marsch conquistou, assim, o segundo troféu da carreira, depois de já ter vencido a Taça Austríaca, em maio, contra o Austria Lustenau. No que toca ao campeonato, esta acabou por ser uma das campanhas mais complicadas para o Salzburgo, que até chegou ao fim da fase regular em segundo lugar. No entanto, a quebra do protocolo de pandemia custou ao LASK Linz 12 pontos, o que levou à perda de liderança à entrada para este apuramento de campeão. A retoma do RB Salzburgo tem sido dominante e sem derrotas (seis vitórias e dois empates), o que resultou em mais uma Liga para o palmarés.
E engana-se quem pensa que ser treinador do RB Salzburgo é sinónimo de um passeio até aos troféus. Ora vejamos… quando Marsch chegou ao clube, no verão passado, perdeu grande parte do núcleo duro que tinha sido construído até então. Dabbur saiu por 17 milhões de euros para o Sevilha FC, Schlager por 15 milhões para o VfL Wolfsburgo, Lainer por 12,5 milhões para o Borussia Mönchengladbach, Wolf por 12 milhões para o RB Leipzig, Samassékou por 12 milhões para o TSG Hoffenheim. Marsch teve de reconstruir. No entanto, o RB Salzburgo voltou a ter uma temporada dominadora a nível ofensivo e já leva 102 golos no campeonato, com duas jornadas para igualar os 110 remates certeiros de 2013/14, ainda com Roger Schmidt no comando. Para muitos dos golos na primeira metade desta época contribuiu Haaland (28 golos em 22 jogos), que Marsch viu ser-lhe ‘roubado’ pelo Borussia Dortmund no mercado de inverno, assim como Minamino (que seguiu para o Liverpool FC) e Pongracic (VfL Wolfsburgo). Como uma máquina oleada a valorizar talentos, o RB Salzburgo fiou-se em Daka, Hee-Chan, Okugawa ou Szoboszlai, entre outros, que têm dado conta do recado na manobra ofensiva e contribuíram para este rolo compressor de futebol apoiado e letal perto da baliza contrária.
“Nós jogamos de forma agressiva e pensamos de forma agressiva”, descreveu Marsch ao longo da época. É certo que se trata de uma agressividade positiva dentro das quatro linhas e que assenta em pilares como a pressão alta e uma energia ímpar com bola, não tivesse já o norte-americano de 45 anos caracterizado o seu estilo de jogo como uma “bebida energética”. E esta filosofia não é só de agora. “Temos um estilo de pressão alta e energia elevada, mas não é apenas isso; é uma forma de viver. Quanto mais os jogadores tomarem conta da equipa e a fizerem deles, melhores seremos”, referia Marsch há dois anos, citado pelo site da Bundesliga, em referência ao trabalho que levou a cabo durante quatro anos no New York Red Bulls, antes de rumar para adjunto de Ralf Rangnick no Leipzig, onde esteve em 2018/19.
“Penso que a construção de uma equipa consiste nos elementos do futebol: a tática, o passe e a técnica, mas isso é apenas metade. A outra parte é criar a mentalidade, o ambiente e a identidade de quem somos, como trabalhamos e como interagimos entre nós. Aliás, até dedico mais tempo nessas questões do que a táticas. É isso que aprecio em ser treinador: ser um líder e um mentor, ajudar todos a perceber como se comprometerem ao mais alto nível”, explicou ainda Marsch sobre a forma como entende o futebol.
O treinador explica a forma de estar no futebol com ênfase no trajeto e não apenas nos resultados obtidos, até porque sem o primeiro nunca existe o segundo. “No futebol, a mentalidade certa determina o sucesso. Diligência, energia, concentração, trabalho duro e diversão. Isso descreve o ambiente em que podemos tirar o melhor proveito dos jogadores. E não estou a falar de resultados. Se pensas apenas em resultados, esqueces os passos no caminho até o sucesso. Presto muita atenção aos meus jogadores nos treinos, no balneário e no refeitório. Quanto conheces de ti mesmo? Quanto é que os teus jogadores se apoiam uns aos outros? Quanto trabalham para o colega de equipa em campo? O que cada um conseguiu desenvolver? Se todas essas perguntas forem respondidas, os resultados chegarão. Temos uma ideia clara da nossa identidade, tanto futebolística quanto humana. Não vem de mim, trabalhamos todos juntos. Sabemos quem somos e qual é o nosso objetivo em comum.” É desta forma que Marsch se define, um líder que provou o quão motivante consegue ser através de um discurso que se tornou viral em pleno Anfield Road.
Aquela palestra em Anfield Road
A 2 de outubro do ano passado, o RB Salzburgo saiu de Liverpool com uma derrota por 4-3 diante do campeão europeu, em jogo da fase de grupos da Champions. Apesar da derrota, Marsch deixou Anfield Road com a cotação em alta e tudo por culpa da recuperação milagrosa que a sua equipa quase conseguia, após estar a perder por três golos aos 36 minutos. Os austríacos foram para o intervalo a perder por 3-1 e ainda conseguiram empatar o resultado com um regresso dos balneários a todo o gás, mas o Liverpool FC – conhecedor do que são reviravoltas em jogos europeus – foi capaz de se impor e um golo de Salah salvou os ingleses.
Para a posteridade ficou o discurso do norte-americano ao intervalo, numa palestra de balneário que conseguiria motivar até o mais descrente dos jogadores. Numa mistura entre alemão (que Marsch admitiu não falar nada há três anos), inglês e muitas palavras que o melhor é não reproduzir aqui à letra, o foco foi totalmente absorvido para a parte mental e de coesão de equipa antes de se tratar qualquer questão tática. “Quantas faltas temos? Quantas? Talvez duas? Isto não é a mer** de um jogo particular! Isto é a Liga dos Campeões! Temos de dar um passo em frente. Há respeito a mais pelo adversário. Respeito a mais pelo adversário! Isso acontece quando temos a bola, quando não a temos e nas faltas. Respeito a mais!”, começou assim a palestra, na qual Marsch fez jus aos tais ideais de liderança e identidade com que se compromete.
“Eles são bons? Sim, são bons. Mas estamos a jogar de forma muito suave, apenas com alguma pressão e aí… não há luta. Eles têm de nos sentir. Eles têm de saber que estamos aqui para competir. Não que vamos apenas tentar jogar da mesma forma em termos de estilo de jogo. Mas que viemos para jogar, certo? Isso é o mais importante. Vamos falar um pouco de táticas… Vimos que eles são bons. Mas podemos jogar melhor e podemos viver um pouco mais nesta partida. Confiança, força… cometer uma falta. Eles não são assim tão perigosos com pontapés de canto ou livres. Vamos a isso, rapazes! Podemos fazer mais. Isso é a mensagem principal agora. Podemos fazer mais”, pode ouvir-se ainda no discurso (pode vê-lo e ouvi-lo abaixo, mas fica já avisado que a linguagem nem sempre é a mais adequada…) que serviu de introdução do mundo do desporto rei a Marsch.
Apesar de uma campanha europeia recheada de golos (16 em seis jogos), o Salzburgo acabou por não seguir em frente na Liga dos Campeões, ficando atrás de Liverpool FC e SSC Nápoles, e foi parar à Liga Europa. Essa é mesmo a grande falha do trajeto de Marsch nesta temporada, pois o emblema austríaco foi eliminado pelo Eintracht Frankfurt logo nos 16 avos de final – perdeu por 4-1 na primeira mão e empatou 2-2 no segundo encontro. É por aí na busca da melhoria nas competições europeias que passará a missão do norte-americano na próxima época, isto caso não apareça algum clube interessado no treinador que tem contrato com o Salzburgo até junho de 2022. Por acaso, Marsch já foi apontado ao interesse do Borussia Dortmund, no início de junho, através do Sport Bild e do Transfermartk. O clube da Vestfália prepara a sucessão de Lucien Favre e o timoneiro do Salzburgo é um dos nomes equacionados para o ataque ao domínio do Bayern Munique em 2020/21.
A roda do azar em Leipzig
Marsch chegou ao comando do Salzburgo depois de uma época como adjunto no Leipzig, naquela que foi a transição perfeita da Major League Soccer para o futebol europeu. O norte-americano não tem dúvidas da importância que uma época no campeonato alemão faz na carreira de alguém fora da esfera do desporto rei na Europa. “Um ano na Bundesliga como adjunto e a trabalhar com Ralf Rangnick deu-me um pouco mais para rumar ao trabalho seguinte. Ajudou-me a ser melhor no meu trabalho, mas também ajudou a minha perceção aqui”, considerou Marsch numa entrevista ao The Guardian em dezembro de 2019.
E a experiência que já tinha como treinador principal nos Estados Unidos revelou-se proveitosa para o trajeto de Marsch em Leipzig. Um dos motivos pelos quais se viu que estava ali uma figura com uma forma única de pensar fora da caixa foi um sistema que implementou no balneário do clube alemão. De forma a que os jogadores cumprissem as regras e regulamentos impostos, Marsch concebeu uma ‘roda do azar’ que distribuía tarefas àqueles que fugissem às normas. “Há diferentes segmentos com diferentes formas de castigo. As multas raramente fazem diferença. Dói mais aos jogadores quando ficam com menos tempo livre”, explicou Rangnick na altura sobre a ideia do então seu adjunto.
Os castigos eram dos mais variados: iam entre ter de encher e limpar as bolas após os treinos, a ter de orientar uma sessão de treino das camadas jovens, a ser guia das visitas ao estádio, ou até mesmo cortar o relvado. Havia ainda a possibilidade de ter de vestir uma camisola cor-de-rosa e um tutu, como uma ‘princesa’, tratar das bebidas destinadas ao treino, arrumar e lavar a roupa, ou ter de comprar prendas para todos os empregados que trabalhavam no clube. Nem a equipa técnica estava a salvo… “Acidentalmente coloquei o meu telemóvel na mesa durante a refeição”, contou Rangnick, o que levou os jogadores a pedirem logo castigo para o treinador. Ora aí está uma ideia criativa e que promove disciplina, enquanto sustenta o espírito de equipa, mais um exemplo da liderança que Marsch pretende levar a cabo.

Marsch até já tinha passado algum tempo no Leipzig, assim como com o Salzburgo, durante 2015, quando acompanhou ambas as equipas em estágio até ao Médio Oriente. O técnico orientava, nesse momento, o New York Red Bulls, e aproveitou a experiência para trocar ideias e assimilar aquilo de diferente que existe na forma de pensar o futebol nos Estados Unidos e na Europa. Não sabemos se foi logo aí que ficou intrigado em aprender a língua alemã, mas a verdade é que essa foi uma das credenciais que Marsch melhorou entre 2018 e 2019 em terras germânicas e que deu muito jeito para a ida até à Áustria e, mais precisamente, Salzburgo.
“O meu objetivo era assimilar, ser eu mesmo, mas também honrar a cultura na qual estou a trabalhar. Há três anos não falava nada de alemão. Zero. Agora, sou relativamente fluente. Têm sido três anos a trabalhar no duro para aprender a língua. Preocupo-me com isso. E de alguma forma, até sou obcecado com isso”, confidenciou Marsch ao The Guardian, referindo que no Salzburgo não é tratado como um treinador norte-americano. Apesar de reconhecer as diferenças entre o país de origem e onde se encontra agora no que concerne à forma como o futebol está avançado, o técnico considera que os Estados Unidos não estão assim tão atrás como se pinta por cá. “A maioria destes clubes têm mais de 100 anos. Nos Estados Unidos, a MLS tem apenas 25 anos. Lá estamos apenas na nossa infância. É essa a forma como os europeus olham para o futebol norte-americano. Mas, não é verdade. Isso não reflete a nossa experiência. Mas, não temos nem de perto história suficiente.”
Subir a pulso num projeto desportivo
Antigo jogador do Chivas USA, Chicago Fire, DC United e Princeton Tigers, Marsch tem conhecido mais sucesso como treinador do que quando calçava as chuteiras e ia para dentro das quatro linhas. Duas vezes internacional pelos Estados Unidos, foi precisamente na seleção norte-americana que iniciou o trajeto como técnico. Em 2011, Marsch foi adjunto de Bob Bradley na seleção dos Estados Unidos e o mentor considera que os triunfos do seu pupilo são vitórias para toda uma nação. “Acho que os futebolistas e treinadores norte-americanos estão sempre a lutar por respeito. O sucesso do Jesse significa muito para todos aqui”, realçou o atual técnico do Los Angeles FC ao The Guardian.
A primeira experiência como treinador principal apareceu apenas um ano depois ao tomar o leme do Montreal Impact na primeira temporada da equipa canadiana no principal escalão norte-americano. O clube terminou a fase regular em 12º lugar e falhou os play-offs. Marsch saiu ao fim de apenas uma época, mas devido ao facto de o treinador e o clube “não partilharem a mesma filosofia”, segundo referiu Joey Saputo, proprietário do emblema de Montreal. “Penso que no Montreal Impact houve momentos em que senti demais a pressão e senti o peso do mundo nos meus ombros”, reconheceu Marsch uns anos mais tarde.
Depois de uma viagem pelo mundo fora com a família a conhecer outras culturas, Marsch voltou às lides futebolísticas como assistente voluntário na Universidade de Princeton. O regresso profissional deu-se em 2015 quando foi contratado pelo New York Red Bulls para suceder a Mike Petke, uma lenda do clube. A escolha não foi bem vista pelos adeptos e levou até a um fórum com a presença dos dirigentes do clube e dos aficionados. A saída de Petke e a entrada de alguém sem um currículo vistoso questionou a filosofia adotada pelos responsáveis do emblema. “Vocês não têm de gostar de mim e podem mesmo nunca gostar. É esse o papel do treinador. Isso não é importante para mim. O que me importa é a equipa… se perdermos, vocês vão odiar-me. Se ganharmos, talvez vocês me aturem. Mas deem uma oportunidade a esta equipa de ir para o relvado e competir”, respondeu Marsch à revolta dos adeptos.

Essas palavras do técnico foram levadas à letra, até demais, pois Marsch deixou o New York Red Bulls como o treinador mais vitorioso da história do clube – um registo de 76 triunfos, 30 empates e 45 derrotas. Para além disso, conquistou o prémio de treinador do ano da MLS em 2015 e ainda a Supporters Shield, destinado à equipa com mais pontos durante a fase regular. Apesar da falta de troféus, os quatro anos em Nova Iorque tornaram-no numa figura ímpar do clube. E foi assim que começou a ligação de Marsch aos clubes da Red Bull, uma relação na qual tem subido a pulso e que o levou dos Estados Unidos até à Alemanha, primeiramente na sombra, e agora à Áustria, onde é a figura principal de uma filosofia e identidade que começa a dar que falar na Europa do futebol e que promete não se ficar por aqui, tendo em conta que esta é apenas a primeira época ao leme de um clube dos campeonatos mais interessantes do desporto rei.
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