Um treinador exigente e incansável na procura de um futebol de ataque e positivo, nem que para isso tenha de correr muitos riscos. É assim que Ivo Vieira é descrito por aqueles que já treinou. A terminar contrato com o Vitória SC no fim desta temporada, o técnico madeirense revelou que não recebeu qualquer proposta de renovação da parte do clube, que respondeu ao salientar que o “timing” da situação será definido pela direção. Depois de uma época de sonho no Moreirense, em que iniciou uma segunda vida no desporto rei, o trajeto de Ivo Vieira em Guimarães pode terminar apenas num ano em que até está na luta pelos lugares europeus no campeonato, deixou uma boa imagem na Liga Europa e tem uma das melhores médias de pontos por jogo (1,62) na história dos minhotos.
Esta vertente ofensiva é já uma paixão duradoura para Ivo Vieira, não só de agora. Já quando treinava na Segunda Liga, o madeirense queria ver a sua equipa a praticar um futebol assentado na saída com bola e numa pressão constante ao adversário. “O Ivo é um treinador muito ofensivo, gosta de jogar no risco e essencialmente é um apologista do bom futebol”, conta-nos Renato Reis, treinado por Ivo Vieira no CD Aves em 2016/17. Só para recuarmos um pouco, os avenses acabaram por subir ao principal escalão nessa temporada, apesar de Ivo Vieira não ter ficado até ao fim ao leme da equipa: foi demitido após a 27.ª jornada, para surpresa de muitos.
Tiago Valente também fez parte desse plantel e corrobora as palavras do ex-colega, para além de considerar que as ideias de jogo de Ivo Vieira são similares à personalidade que tem. “É um treinador com ideias arejadas, liderança aberta, pessoa sincera e frontal, o que tem para dizer é logo na cara, não está com rodeios. A ideia de jogo é muito ofensiva à imagem da personalidade dele: nota-se que é uma pessoa que não mostra receios e então passa-nos essa mesma forma de ser para dentro de campo”, começou por dizer-nos o defesa agora do AR São Martinho. “Muito ofensivo, sem medo de arriscar, mandar todos à procura do golo e estar a maior parte de tempo perto da baliza contrária, mesmo que para isso tenha de correr riscos”, prosseguiu.
Ora, nesse Aves lutava-se para subir. Ainda assim, mesmo quando pegou num conjunto que tinha de fazer de tudo para evitar a descida, Ivo Vieira não mudou a forma como vê e está no futebol. Em 2016/17 rumou ao Estoril com onze jornadas disputadas na Liga Portuguesa. Apesar da lanterna vermelha, o timoneiro recusou jogar para o ‘pontinho’. “Um estilo ofensivo sem dúvida, que privilegia sempre o futebol de posse, para muitos um futebol de risco, mas em que a maioria dos jogadores se sente confortável e agradado com a ideia. Um treinador exigente no dia-a-dia que não deixa facilitar ninguém”, confidenciou-nos Pedro Monteiro, que alinhava então na equipa da Linha. O desfecho dessa época é que acabou por não correr como seria pretendido, com os estorilistas a caírem à Segunda Liga.
Sair a jogar, pressão e ataque com riscos
Tentámos entrar na mente de Ivo Vieira e perceber quais são os métodos de trabalho que estão por detrás da ideia de um futebol ofensivo. Só um aparte para que se entenda o privilégio do ataque: o Vitória SC, sexto classificado da Liga Portuguesa (a um ponto do Rio Ave, na quinta posição), tem o quarto melhor registo de golos da competição com 40 remates certeiros em 24 rondas. Apenas Benfica (52), FC Porto (50) e SC Braga (41) estão acima dos vimaranenses neste parâmetro. Mas como para fazer golo é necessário chegar até à área contrária, nos treinos Ivo Vieira “focava-se muito na saída de bola, em como quebrar a primeira pressão do adversário e depois encontrar o espaço livre para podermos chegar à baliza adversária”, tal como referiu Pedro Monteiro.


São mesmo três os pilares prediletos do treinador de 44 anos: pressão, sair a jogar e o processo ofensivo. Assim o era na Vila das Aves também. “Os treinos eram equilibrados, trabalha todas as vertentes do jogo. Mas onde ele insistia mais era na pressão, na organização ofensiva e nas saídas de bola. Gostava sempre de sair a jogar com qualidade e pelo chão, de ter um futebol vistoso e intenso e não tinha medo de correr riscos para o fazer. Se repararmos as equipas dele jogam muito subidas, a pressionar muito alto e posicionadas no meio-campo adversário. Gostava de salientar também que ele é completamente contra o antijogo, um aspeto a ter muito em conta no futebol português”, revelou Renato Reis.
Como não há dois jogos iguais, a preparação específica para o adversário dessa semana é também um dos focos das sessões de trabalho. “Ele gostava de exercícios de posse de bola. Havia um treino que ele fazia sempre mesmo quando o ciclo semanal era mais curto. Dependendo do próximo adversário, ele preparava-nos para a forma de ter a bola desde a saída do pontapé de baliza até chegarmos ao adversário. E também a forma como poderíamos explorar os pontos menos fortes dos adversários para poder chegar ao golo. Isto sempre desde o pontapé de baliza”, apontou Tiago Valente antes de dar conta de outra faceta de Ivo Vieira. “E ele aí insistia, repetia e voltava a repetir…”
Pois bem, esta exigência fica explícita num episódio relatado por Renato Reis, quando o Aves preparava a temporada 2016/17 sob o comando técnico de Ivo Vieira. “Quando toca ao trabalho ele é muito profissional e exigente com os jogadores, às vezes até é exigente a mais”, realçou para passar à situação em específico. “A terminar um estágio de pré-época nos Arcos, ele deu-nos dois ou três dias de folga e nós ficámos todos contentes”, começou por contar.
“O problema é que logo a seguir vieram entregar-nos uma folha com valores de multas caso chegássemos com peso a mais. Estamos a falar de valores entre 50 a 300 euros, mediante a quantidade de peso. O que para a Segunda Liga está completamente fora de contexto. Comentámos logo entre nós: ‘este gajo é maluco, não sabe o que está a fazer’. O que é certo é que toda a gente cumpriu para não ter de pagar. Isto para demonstrar o quão exigente ele é.” Um exemplo da exigência incansável que acabou por dar frutos, para isso basta recordar a campanha realizada pelos avenses.
A faceta divertida fora da zona de conforto
Não se deixem levar só pelo lado exigente de Ivo Vieira. A contrastar com a parte séria e de trabalho há uma faceta divertida e extrovertida, que até entra em brincadeiras com os jogadores. “Também é muito divertido, gostava de ver alegria no treino, prazer de jogar bem e tinha uma relação próxima com os jogadores”, contou Pedro Monteiro.
No entanto, quando chegou ao Aves não demonstrou um grande à vontade logo no início, até porque era a primeira aventura da carreira fora da Madeira. “Foi o primeiro ano dele a treinar no continente vindo da Madeira. No início ele era um pouco mais fechado e chegou a um clube que tinha um ambiente muito familiar. Se calhar no começo esteve mais afastado de nós, mas com o passar do tempo foi-se juntando e admitindo certas brincadeiras boas e saudáveis para a equipa. Nós também tínhamos um grupo de trabalho fantástico”, relembrou Tiago Valente.
Tal foi a proximidade com os jogadores no Aves que levou a momentos de pura diversão e que ficaram na memória de Renato Reis, como o defesa do Limianos nos relata. “Quando havia almoços/jantares de equipa, por exemplo, era uma autêntica festa. Lembro-me especialmente de um jantar em que ele trocou de roupa com um jogador à frente de toda a gente, inclusive funcionários do restaurante. Lembro-me também de quando íamos de estágio pré-jogo, nas viagens longas, ele vinha várias vezes para os bancos de trás jogar Rami (jogo de cartas) com os jogadores. Era engraçado porque ele arranjava sempre picardias durante o jogo. Era dos piores jogadores e ele sabe disso, mas por conseguinte era dos melhores pagadores (risos).”
As duas vidas de Ivo
Agora, uma lição de história. Antes de ser treinador, Ivo Vieira calçou as chuteiras e foi futebolista. Formado no Machico, fez toda a carreira enquanto sénior ao serviço do Nacional, mas não chegou a jogar no principal escalão. A época com maior rodagem do antigo defesa foi em 2000/01, na qual realizou 30 encontros com a camisola dos insulares. Pendurou as botas apenas com 28 anos em 2004 e logo na temporada seguinte estava como adjunto no Nacional.
Depois de vários anos na equipa técnica, aventurou-se como técnico dos juniores do Nacional. Em 2010/11 estreou-se no comando da equipa principal como interino em duas partidas. Iniciou a época seguinte como timoneiro dos seniores mas durou apenas até ao fim de outubro, com um saldo de seis vitórias, três empates e sete derrotas. Depois rumou ao rival Marítimo, onde esteve por dois anos a orientar a equipa B, foi adjunto do plantel principal até chegar ao leme do conjunto durante 2014/15, pegando na turma após Leonel Pontes.


Em 2016/17 deixou a ilha pelo continente, contratado pelo Aves. Como já foi referenciado acima, o clube avense demitiu-o após quatro encontros sem vencer, mas com a equipa na vice-liderança da Segunda Liga à 27.ª jornada, em lugar de subida ao principal escalão, e ainda com nove pontos de avanço sobre o terceiro classificado. Um despedimento que foi uma total surpresa para muitos, incluindo os jogadores.
“Fizemos uma grande época nesse ano de subida do Aves. Nós e o Portimonense éramos de longe as melhores equipas a praticar futebol e isso refletiu-se na pontuação final. Tínhamos um excelente plantel, mas o Ivo teve muito mérito, tivemos uma série de vitórias fantásticas com ele. Embora o futebol tenha coisas muito estranhas, até hoje nunca percebi o porquê de ele ter sido despedido a algumas jornadas do final. Quando ele se foi embora estávamos em segundo lugar (que dava acesso ao principal escalão) com nove ou dez pontos de avanço sobre o terceiro classificado”, lembrou Renato Reis.


O treinador natural de Machico começou 2016/17 na Académica, ainda na Segunda Liga, mas trocou a Briosa pelo Estoril Praia em novembro, referindo no momento que a proposta da equipa da Linha era “irrecusável”. A missão nos estorilistas não foi fácil, ao pegar no clube na última posição, e terminou mesmo com a descida de divisão. “Não foi um ano fácil. Apesar do bom futebol que praticávamos, acabámos por descer. Ele sempre teve um discurso positivo, mesmo por vezes sendo difícil para o grupo trabalhar sobre derrotas e com a pressão de somar pontos. Mas tanto o mister, como nós, fomos até ao último jogo com esperança de nos mantermos na Liga Portuguesa e ele sempre nos passou a mensagem para acreditarmos e termos confiança nas nossas qualidades”, recordou Pedro Monteiro.
Ora, apesar da despromoção, o futebol levado a cabo por esse Estoril dentro das quatro linhas não passou indiferente aos olhos de muitos e o Moreirense decidiu apostar em Ivo Vieira, dando assim uma segunda vida ao técnico. A época passada protagonizada pelo Moreirense está ainda bem presente na memória de todos. Depois de um 15.º lugar na Liga Portuguesa em 2017/18 (Manuel Machado, Sérgio Vieira e Petit passaram pelo cargo), os cónegos conseguiram a sexta posição da tabela sob o comando de Ivo Vieira em 2018/19.
No último verão fez uma curta viagem de Moreira de Cónegos para Guimarães. O futebol vistoso do Vitória também tem deixado fãs por esse mundo do futebol, principalmente pelas exibições realizadas na Liga Europa. Após deixar para trás Jeunesse Esch, Ventspils e Steaua Bucareste nas pré-eliminatórias, os minhotos encontraram Arsenal, Eintracht Frankfurt e Standard Liège na fase de grupos. Sendo claramente os ‘underdogs’, não surpreende que os vimaranenses não tenham seguido em frente na competição, mas conseguiram ainda somar cinco pontos e empatar em casa com o Arsenal, numa daquelas partidas que não sai da memória. Antes da paragem na Liga Portuguesa por causa da pandemia de Covid-19, o Vitória estava numa senda de três triunfos consecutivos e está no sexto posto do campeonato, a um ponto do Rio Ave e a cinco do Sporting.
As ideias para um clube grande
Visto que o futuro de Ivo Vieira está, assim, incerto devido à falta de proposta de renovação do Vitória até agora, não se sabe qual poderá vir a ser o próximo passo numa carreira que tem sido a subir desde que deixou a Madeira. Uma certeza surge na mente de vários jogadores que já foram treinados pelo técnico de 44 anos: acima de tudo, está mais do que preparado para os desafios que vierem. “Acho que ele já está num clube de topo, um clube que tem todas as condições e plantel para fazer bons campeonatos. Ele está certamente preparado para a oportunidade que surgir ou mesmo para continuar no Vitória”, considerou Pedro Monteiro, central do Leixões.
Quem acompanhou Ivo Vieira no segundo escalão, sabia que este iria chegar a outros patamares. “Não tinha dúvidas de que pudesse chegar onde está hoje e que possa ainda melhorar, embora o Vitória seja um clube muito perto do topo em Portugal. Mas o Ivo pode ainda chegar a clubes de maior nomeada”, salientou Tiago Valente. Apesar do panorama atual não ser próspero nas oportunidades, considera que Ivo Vieira não vai desiludir quem nele apostar. “Basta ter as oportunidades certas no momento certo. Sabemos que atualmente o mercado é muito competitivo e as oportunidades são escassas. Há muita oferta de treinadores e poucos podem ter essas oportunidades. Mas sei que se ele tiver não deixará ninguém ficar mal e irá cumprir.”


Renato Reis diz mesmo que vê Ivo Vieira num clube ainda com maiores objetivos do que o Vitória. “As ideias que o Ivo tem encaixam na perfeição numa equipa grande, que dispute títulos e embora no futebol não haja certezas, eu arrisco-me a dizer que tenho a certeza de que ele vai chegar a esse patamar”, referiu. Ainda assim, o ex-pupilo de Ivo Vieira pensa que seria positivo para ambas as partes que o técnico ficasse no D. Afonso Henriques por mais uma época. “Ele já está num grande clube. O Vitória é das melhores equipas portuguesas e muito sinceramente acho que fazia todo o sentido ele ficar por lá mais uma época. Seria bom para ele e também para o clube, até porque já não víamos o Vitória a jogar assim há muito tempo. Aliás, ficamos todos com a sensação de que o Vitória esta época com uma pontinha de sorte aqui e ali podia ter feito coisas espetaculares. Na Liga Europa por exemplo, não me lembro de um jogo onde foi claramente inferior num grupo de equipas com muita qualidade.” Resta saber se o Vitória e Ivo Vieira serão da mesma opinião, ou se irão tomar caminhos distintos.
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