É fácil olhar para a entrevista que Gianni Infantino deu ontem à “Gazzetta dello Sport” e só ver coisas más ou um ato de contrição. Devo dizer, no entanto, que não vejo as conclusões tiradas pelo presidente da FIFA como negativas – são mais a aceitação de uma realidade para a qual todos contribuímos e que agora exige um passo em frente. Infantino sabe que o futebol que vai sair deste momento apocalíptico será muito diferente daquele que aqui chegou e parece resoluto em adotar a famosa lição vinda da sabedoria chinesa que recorda que o símbolo utilizado para se escrever “crise” é o mesmo usado para escrever “oportunidade”.
A paragem das competições e a quase impossibilidade de se terminar a época em curso – ainda ontem o “The Guardian” advertia dos seus leitores para a improbabilidade de voltarmos a ter desporto de elite nos próximos meses largos – é uma crise, mas pode ser também uma oportunidade gigantesca para se moldar o desporto que queremos. E que necessariamente será muito diferente do que temos, que no caso do futebol é algo estupidamente inflacionado pelos dinheiros de fora do jogo e ainda mais estupidamente desequilibrado, com os grandes a serem cada vez maiores para o paradigma em que se inserem. Os reflexos da crise vão tão para lá daquilo que o Record de hoje revela acerca dos supostos planos do Benfica manter o plantel, por ver que o mercado vai estagnar. Porque a verdade é que tudo vai estagnar, tudo vai ser revisto em baixa. E o futebol não será exceção.
Mesmo que o futebol fosse uma atividade financeiramente saudável – e todos desconfiamos que não é, por força da passagem por ele de dinheiro de fundos de investimento pouco claros, que nisso veem a forma de se legitimar e lavar a cara – já iria ter de se rever em baixa. Mas é claro que, como todas as áreas da sociedade, o futebol vai ressentir-se da recessão que está a bater-nos à porta. Estamos a falar de quebras de dimensões bíblicas nos PIB de todos os países cuja atividade produtiva foi reduzida para menos de metade durante estes meses, com os reflexos que isso vai ter no emprego, no poder de compra dos cidadãos e na sua disposição para gastarem em atividades lúdicas. Em Itália já se debate muito a sério o corte dos salários dos jogadores e, mesmo que por cá Joaquim Evangelista tenha a sua razão quando chama a atenção para o facto de boa parte dos jogadores profissionais ganharem muito abaixo da média da Europa que conta, seria irrealista pensar que podem manter os privilégios. Achar esse equilíbrio, porém, não é função da FIFA.
Por mim, fiquei satisfeito com as respostas de Infantino. Primeiro, porque o presidente da FIFA se mostrou firme na luta contra o dinheiro de origens suspeitas que tem inflacionado o futebol. “Todos os verões circulam, às vezes através de paraísos fiscais, sete mil milhões de euros em transferências internacionais. É o setor económico menos regulado do Mundo. E a cada vez que a polícia ou as finanças fazem um controlo, encontram sempre qualquer coisa de estranho”, justificou-se o líder da FIFA quando convidado a falar na tentativa que já iniciara de regulamentar o setor dos agentes e das transferências. Depois porque já antes do Covid19 eu achava que o futebol precisa de menos competições, mas mais equilibradas – e isso não implica dar uma machadada nos maiores clubes de cada país, mas sim pô-los a jogar uns com os outros, num patamar superior. Dizer agora que o desequilíbrio fomos nós que o criámos, com competições mais ricas e a sua distribuição de dinheiro, serve de tanto como identificar a origem do Covid19 num mercado de rua em Wuhan: permitirá evitar a repetição de erros, mas não dá para voltar atrás no tempo.
Espero que desta crise saia um futebol mais são. Menos inflacionado por dinheiro suspeito, menos ávido na busca da vitória a qualquer preço, mais consciente de que não deve matar a galinha dos ovos de ouro e mais adaptado à nova realidade que, como a expansão do vírus mostra, é global e não fica fechado dentro das fronteiras de cada país. Infantino talvez não possa dizê-lo com todas as letras, porque imediatamente lhe cairia em cima um magote de moralistas e acabou por defender “um passo atrás”. Em contrapartida, tudo aquilo que diz mostra, pelo contrário, que esta crise é o pretexto para dar um passo em frente. Em direção ao futuro.