Em 2020, Gabriel Heinze é um homem requisitado. Talvez como nunca o fora na carreira enquanto jogador. Afinal, aos 41 anos e com apenas cinco temporadas de carreira de treinador, vai construindo a fama de especialista em ressuscitar gigantes. Fê-lo com o Argentinos Juniors, em 2016/17, e fê-lo esta época levando o Vélez ao terceiro lugar da Liga argentina, potenciando uma geração de talento inigualável no Fortín. Hoje, o ex-leão é um dos técnicos mais conceituados da América do Sul e as suas equipas são invejadas pelo futebol que praticam.
No futebol argentino, ver-te-ia a jogar no Vélez, atirou alguém durante um direto numa rede social de Federico Valverde. O médio uruguaio de 21 anos não foi de meias medidas. Sem qualquer pudor ou segundas intenções, sem qualquer paixão motivada por passados recentes, declarou ao Mundo o seu amor pelo futebol do emblema de Buenos Aires. “Digo-te uma coisa: na verdade, com Heinze, o Vélez era a equipa que melhor jogava no teu país. Agora não sei, mas com Heinze gostava muito de ver os jogos do Vélez. Era uma das melhores, como o River, ainda que o Boca tenha sido campeão, mas para mim o Vélez era especial a jogar futebol”, respondeu Valverde.
72 vezes internacional argentino, ao longo da carreira, enquanto jogador, Gabriel Heinze cruzou-se com nomes como Gregorio Manzano, Luis Fernández, Vahid Halilhodzić, Alex Ferguson, Bernd Schuster, Juande Ramos, Didier Deschamps, Luis Enrique ou Tata Martino, mas foi Marcelo Bielsa quem mais o marcou. Não é surpreendente. Foi um dos produtos da rede de formação instituída por El Loco no Newell’s Old Boys, além de ter sido com o agora treinador do Leeds United que venceu os Jogos Olímpicos de 2004, em Atenas. Foi, aliás, Bielsa que tornou Heinze internacional argentino uns bons anos após a passagem d’el Gringo por Alvalade – em 98/99 fez oito jogos pelo Sporting de Mirko Jozic, por empréstimo do Real Valladolid.
Agora, como treinador, Gabriel Heinze vai deixando a sua marca tal qual o seu mentor. Nenhum clube pelo qual El Gringo passou lhe ficou indiferente. Nem mesmo o Godoy Cruz, onde começou a carreira fora dos relvados, mas pouco tempo durou. Sem a certificação necessária para ser treinador, Heinze nunca pôde sentar-se no banco dos Bodegueros, orientando sempre o clube, em dia de jogo, a partir da bancada. “Obrigado Heinze, mas precisamos de um treinador certificado”, podia ler-se nas bancadas do Feliciano Gambarte.
Se no Godoy Cruz, Heinze nunca teve os adeptos do seu lado e a má relação com o presidente desde cedo deixou o seu lugar a prazo, quase tudo foi diferente no Argentinos Juniors, um histórico então caído em desgraça, mas recuperado e ressuscitado por ele. Em 2016, o clube que formou Diego Armando Maradona caiu à segunda divisão argentina. Apenas uma temporada depois, confirmou o regresso à elite pela mão de Gabriel Heinze. El Bicho, confirmou o regresso à Primera División ainda com três encontros por jogar e, quatro anos depois, por lá ainda se mantém, tendo mesmo regressado às competições internacionais nos últimos anos.
O legado de futebol perfumado jogado por uma equipa de Gabriel Heinze não é de hoje. Há quatro anos eram muitos os elogios feitos ao futebol do Argentinos. Um futebol de toque, movimentação constante, bola de pé para pé, rápido, intenso. De pressão a todo o campo. Como Bielsa ensinou e como Heinze transportou, também, nos últimos meses, para Liniers, casa do Vélez. Um futebol como há muito El Fortín não conhecia. Desde Gareca, no início da década passada, mais precisamente.
Posicionamento acima de tudo
Fiel seguidor de Bielsa, com quem recusa comparar-se, é em campo que se percebem melhor todas as comparações que são feitas entre El Loco e El Gringo. “Gabriel joga em duas formações: ou em 4x3x3, ou em 3x4x3 que depois se transformava num 3x3x1x3”, afirmou Pablo Galdamés à imprensa chilena. O mesmo 3x3x1x3 que tanta escola fez na Argentina, a Escola Bielsista, que influenciou toda uma geração de novos treinadores no país, mas também fora dele, como é assumidamente o caso de Pep Guardiola.
“Tanto o 4x3x3 como o 3x3x1x3 propiciam a ocupação racional do espaço, quer em amplitude, quer em profundidade. Os triângulos surgem em campo de forma natural e isso facilita a procura do terceiro homem. Heinze observa as características do jogador e pensa como pode colocá-lo nas funções que pretende para determinado setor, de acordo com a disposição da equipa e da do rival. Por isso é habitual ouvi-lo falar de forma recorrente numa palavra chave: posicionamento. Como consequência, os jogadores mais versáteis ganham relevância pois dão-lhe diferentes variantes e dinâmicas”, analisa Camilo Francka na TyC Sports.
“Ainda que o Vélez tenha mostrado sempre intenção de sair a jogar curto nos pontapés de baliza e perante a pressão alta dos adversários, muitas vezes Heinze elegeu uma distribuição intermédia ou longa orientada para o espaço lateral. Com a bola em movimento, viu-se sempre vontade de gerar superioridade através de uma construção pelo chão. Heinze está convencido que uma construção limpa é fundamental para progredir com êxito. Numa lógica muito Bielsista, escolheu muitas vezes jogar com um médio na defesa e assim reunir uma quantidade ainda maior de futebolistas de características ofensivas”, acrescenta o analista. “A ocupação do espaço é a prioridade de Heinze. Era comum ver nos jogos do Vélez de Heinze uma rotação posicional, mesmo dentro da própria ação. Caos controlado”.
Pela mão de Gabriel Heinze, o Vélez voltou a definir-se como o melhor de todos os outros. O que no campeonato argentino quer dizer a equipa que fica logo atrás de Boca e River. Depois de anos terríveis, o Vélez ressuscitou. Em 2014/15 a equipa não foi além do 27º lugar (a Superliga tinha então trinta equipas), sendo 11ª, 19ª e 16ª nos anos seguintes. Com Heinze? Nas duas temporadas que iniciou à frente do clube levou-o a um sexto lugar e ao terceiro na época que há pouco concluiu.
“Com Heinze fiquei estupefacto com a quantidade de movimentações que desconhecia, apesar de achar que sabia tudo de futebol. Depois encontras tipos loucos como ele e percebes que não é bem assim. Taticamente está noutra dimensão, noutro nível, está muito adiantado”, reconheceu Ricardo Centurión, o polémico atacante argentino chegou a ser ligado a vários clubes portugueses e é reforço recente do Vélez.
Depois do Argentinos, Heinze ressuscitou o Vélez
Ao todo foram 70 jogos com Heinze. 31 vitórias, 21 empates e apenas 18 derrotas, mas, mais do que isso, 89 golos marcados. Uma posse de bola média que rondou os 60% e que fez do clube, na época passada, aquele que mais bola teve. Dado curioso: nos jogos em que teve menos bola, venceu, mas naqueles que registou maior percentagem de posse de bola, não conseguiu fazê-lo, o que é sintomático de alguma dificuldade em superar blocos bem organizados. Tal qual aconteceu com os três jogos em que mais rematou: não venceu.
Mas não foi só ofensivamente que o Vélez de Heinze deixou boas indicações. Com 14 golos sofridos foi a segunda defesa menos batida da competição, e em 2020, sofreu golos em apenas três dos sete jogos realizados. Além disso, foi a equipa que menos remates por jogo permitiu e a segunda com menos remates fora da área permitidos, tendo sido também a equipa que menos faltas cometeu por jogo, abaixo da média tanto em cartões amarelos como vermelhos, sintomático, também, da organização defensiva de excelência do emblema de Buenos Aires.
Com Heinze, o Vélez foi a quinta equipa que mais alto no terreno pressionou, foi a terceira equipa com mais passes concretizados, mas a que terminou com a melhor média de acerto de passe. Dentro do próprio meio campo, ninguém teve uma percentagem de acerto de passe tão alta, sendo que o Vélez foi das equipas que menos contra-ataques efetuou, ilustrativo da paciente organização ofensiva da equipa. Ninguém fez mais passes por posse de bola do que o Vélez.
Nem tudo, porém, foram rosas para o Vélez. Apesar das várias qualidades da equipa, a capacidade de desequilíbrio no último terço foi um problema ao longo da temporada. Precisou em média de onze remates para fazer um golo, tendo terminado somente com o décimo melhor registo ofensivo da competição. Foi somente a quinta equipa com melhor percentagem de acerto de passe em posições intermédias do terreno e a oitava em passes concretizados no último terço.
Por fim, foi uma equipa com uma fragilidade invulgar nos reinícios de jogo. Dos 14 golos sofridos, seis ocorreram entre o início da segunda parte e o minuto 60 do encontro, tendo marcado a maioria dos seus golos entre os 16 e os 30 minutos. Ou seja, uma equipa algo inconsistente com tendência para desligar em determinados períodos do encontro.
Mais do que tudo isto, porém, Heinze potenciou uma geração de ouro que já valeu muitos milhões de euros ao clube: Santiago Cáseres saiu para o Villarreal CF por dez milhões, Matías Vargas saiu para o Espanyol por 10,5 milhões, Nico Domínguez foi reforço do Bolonha FC a troco de 7,35 milhões e será uma questão de tempo até que Thiago Almada, Lucas Robertone ou Álvaro Barreal por tantos outros saiam.
“Desde que Heinze chegou que o meu caminho ficou marcado. Há um antes e um depois na minha carreira desde que Heinze me deu a mão. É um treinador que se destaca de todos. É um profissional impressionante, um louco pelo trabalho”, reconheceu Santiago Cáceres. “Heinze deixou-me muitas coisas. É um tipo que me fez crescer futebolisticamente, mas também como pessoa. Transformou-me numa pessoa muito mais profissional. Fez-nos acreditar a todos em muita coisa em que não acreditávamos. O principal é que conseguiu que remássemos todos para o mesmo lado. Fizemos uma boa temporada e terminamos em terceiro lugar. É um treinador detalhista, metódico e que percebe muito de futebol”, atirou Pablo Galdamés ao jornal chileno Pauta.
Tal como havia feito no Argentinos, o segredo do sucesso de Heinze no Vélez fez-se da prata da casa: rejuvenesceu o plantel e deu espaço aos jovens formados no clube. Durante a temporada mais recente, apenas o Banfield tinha mais jogadores formados no clube, no plantel, sendo que apenas Godoy Cruz e Talleres Córdoba perfizeram uma média de idades inferior à dos jogadores utilizados por Heinze na Superliga argentina. De muito longe, o Vélez foi a equipa mais jovem do topo da classificação, já que o Boca surgiu apenas como a oitava equipa mais jovem da competição.
Em duas temporadas e meia no Vélez, Heinze afastou o cenário da despromoção e devolveu o clube à Copa Libertadores, permitindo ao Fortín uma almofada financeira importante em função da venda dos jogadores que potenciou. Em março, porém, soltou a bomba: deixava ali de ser treinador do clube, apesar de ter contrato até julho, algo que enfureceu o presidente do clube. Segundo parte da imprensa argentina, a venda de Gastón Giménez para os Chicago Fire pode muito bem ter sido a gota de água para a decisão de sair do clube, sentindo Heinze não ter condições para desenvolver o seu projeto se continuavam a vender-lhe jogadores importantes.
Martín Cardetti saiu recentemente em defesa de Heinze garantindo que, ao contrário do mentor, não é louco, mas foi Lucho González, ele mesmo, que se assumiu como grande adepto do ex Sporting. “Fico muito feliz por tudo o que está a viver como treinador. Da esmagadora maioria de jogadores que já o tiveram como treinador, duvido que algum consiga falar mal de Heinze. Vejo-o com toda a capacidade para vir a dirigir a seleção argentina. É alguém que já a viveu e a conhece internamente como ninguém, com tudo o que isso significa. E, claro, por tudo aquilo que já demonstrou como treinador”, afirmou o ex FC Porto.
Com a saída do Vélez, Gabriel Heinze deixa um legado de identidade e personalidade difícil de igualar. Tirou o Fortín do fundo do poço para o devolver à elite do continente, nunca renunciando à sua ideia. Dogmático, sim, mas para que no fim tudo valesse a pena. Ressuscitando mais um gigante e recebendo o agradecimento dos seus, e dos outros. Dos que potenciou e dos que se apaixonaram, mais uma vez, pelo bom futebol.
Comentários 1