O futebol tem um novo herói. Uma nova superestrela. Para os mais atentos já o era, mas o recomeço do campeonato alemão apontou ainda mais os focos para Kai Havertz. Um autêntico fenómeno precoce que há algum tempo faz história na Bundesliga. Comparado a Michael Ballack e a Mesut Özil, é para muitos a próxima venda centenária que nem a covid-19 irá conseguir evitar.
Em Leverkusen, o futebol regressou com um homem em especial destaque e uma surpresa inicial que deu agora lugar a uma certeza: Kai Havertz, qual Thomas Müller em tempos, vai redefinindo uma posição. Se Müller instituiu no futebol a ideia de Raumdeuter, o interprete do espaço, Havertz é agora o Alleskönner, aquele que tudo faz. E que bem o faz. A culpa é do avô.
“O meu avô foi determinante para o meu gosto pelo futebol. Foi ele que me ajudou a dar os primeiros passos neste jogo. Obviamente o meu pai e o meu irmão também tiveram a sua importância para me fazer jogar futebol em idade jovem. Todos eram malucos por futebol, éramos uma família de futebol. Adoramos o jogo e tudo o que o rodeia, portanto cresci com isso e foi assim que a paixão começou”, explicou Havertz ao site oficial da Bundesliga.
Foi no Alemannia Mariadorf, clube de que o avô era há muitos anos presidente, que Kai Havertz se iniciou no futebol – jogava sempre em escalões dois anos acima do dele – antes de rumar ao grande clube da região onde nasceu, o Alemannia Aachen. Com sete anos de futebol nas pernas, em 2010, Havertz rumou ao Bayer Leverkusen, onde concluiu a formação. “Toda a gente dizia sempre que tinha potencial para fazer carreira como futebolista, mas mesmo assim são uns bons dez ou doze anos de trabalho até conseguir ter uma oportunidade para jogar numa grande liga como a Bundesliga”, afirma.
Adepto do Aachen, Havertz não durou mais do que uma temporada no clube do coração antes de rumar a Leverkusen. Foi precisamente um jogo frente aos farmacêuticos que convenceu o atual clube do alemão. É um jogo no qual nem sequer era para estar a ser observado. “O Kai estava a jogar pelos Sub-12 do Aachen contra os nossos. Era um ano mais jovem do que toda a gente. Não me recordo ao certo de como o jogo terminou, 8-3 para nós creio, mas ele marcou os três golos da sua equipa. Essa foi a minha primeira impressão dele”, conta Slawomir Czarniecki, treinador nas camadas jovens do Leverkusen, ao site da Bundesliga.
Os problemas para Havertz não chegaram senão aos 14 ou 15 anos. Um salto abrupto na estrutura física quando até então era um dos jogadores mais pequenos da equipa obrigou a uma adaptação imprevista. “Até aos 14 ou 15 anos ainda era um dos jogadores mais baixos, mas depois atravessei um pico de crescimento dramático. Tive de me habituar ao facto de as pernas serem mais longas, o que afeta toda a tua forma de jogar futebol. Foi difícil, especialmente no patamar Sub-15 e Sub-16. Não estava a ser titular muitas vezes e passava grande parte do tempo no banco de suplentes”, recorda.
Um fenómeno, porém, não se deixa abater e aqueles problemas não foram mais do que um buraco na estrada para Kai Havertz. Em 2016, liderou o Bayer Leverkusen ao título nacional alemão de Sub-17 com 18 golos em 26 jogos, nos quais se inclui o primeiro tento apontado frente ao Borussia Dortmund, numa final vencida pelos farmacêuticos por 2-0. Nove meses mais tarde lá estava ele, em pleno Signal Iduna Park, ao serviço da equipa principal do clube. As mesmas cores, mas um nível estratosfericamente superior.
Em temporada de estreia, Kai Havertz apontou quatro golos e rubricou seis assistências, deixando em sentido toda a concorrência. Tornou-se o mais jovem de sempre a vestir a camisola principal do Bayer Leverkusen e até na Liga dos Campeões participou, impressionando crítica, adeptos e companheiros de equipa. “Havertz tem uma grande compostura e técnica e a sua capacidade de decisão é intocável. Vi-o surgir na equipa principal desde que aqui cheguei e o seu desenvolvimento tem sido incrível. Rapidamente se tornou numa peça fundamental para nós”, admitiu Kevin Volland.
Como boa história que se preze, nem um capítulo particularmente interessante se deixou de escrever. Afinal, foi numa altura fundamental do percurso académico que Kai Havertz começou a surgir no futebol. Quando explodiu na equipa principal do Leverkusen, entrava em plena época de exames. “Tive de fazer os exames do secundário ao mesmo tempo que jogava e um deles coincidiu com um jogo da Taça. Tinha exame numa quarta feira logo após um jogo fora de casa na terça feira, que ainda por cima foi a prolongamento e grandes penalidades. Cheguei a casa bem tarde e tive de fazer o exame no dia seguinte. É melhor nem dizer como correu esse exame”.
Foi devido a compromissos escolares que Kai Havertz acabou por falhar um encontro dos oitavos de final da Liga dos Campeões perante o Atlético Madrid, de forma a poder terminar os exames, já que o clube lhe havia dado três dias de folga nessa semana para o efeito. Se dúvidas houvesse em relação à capacidade de Havertz no futebol de elite, elas ficaram dissipadas meses mais tarde. Na segunda temporada como profissional, falhou apenas quatro jogos na Bundesliga. Por altura da terceira, era já uma estrela mundial.
Com apenas 19 anos, Kai Havertz marcou 17 golos na Liga Alemã para um total de 20 em toda a temporada 2018/19, registo fundamental para que em dezembro de 2019 pudesse chegar aos 30 golos, tornando-se no mais jovem jogador a alcançar tal marca. Hoje, com apenas 20 anos, Kai Havertz leva 112 jogos na Bundesliga e 34 golos e é para muitos a próxima venda na casa das centenas de milhões. Quem há muito o segue não está surpreendido.
“Comecei a seguir o Kai Havertz quando ele jogava nos escalões jovens alemães, ainda por altura dos Sub-16. Acompanhei intensivamente a sua revelação na Bundesliga, em 2016/17. Não pareceu de todo fora do habitat natural e falamos de um adolescente a ser atirado aos leões. Havertz tem imensas qualidades valiosas. Contribui com golos, assistências e cria oportunidades de golo a partir de terrenos mais recuados de forma consistente. A inteligência que revela em qualquer posição torna-o especial. Quando apareceu, era mais um número 10, jogando entre linhas ou mais como terceiro médio. Agora pode jogar como médio direito, extremo direito, falso nove, nove e meio…”, afirmou David Webb, um dos mais conceituados observadores ingleses da atualidade ao Independent.
“Se uma equipa procura um avançado que seja capaz de recuar no terreno de forma inteligente tendo dois extremos rápidos na equipa – um pouco como faz o Liverpool com Firmino, Salah e Mané -, Havertz é capaz de o fazer e ao mesmo tempo ser uma séria ameaça dentro da área. Também pode ser usado com um avançado de referência, já que o trabalho que faz, sendo excecional a encontrar o passe certo, a construir jogo e com a sua movimentação, é capaz de criar todo o tipo de problemas aos adversários”, acrescenta.
“Havertz é já um jogador incrivelmente completo apesar de tão tenra idade. Os melhores organizadores de jogo excedem-se jogando mais fora da área, mas ele é igualmente letal dentro dela, além de ser incrivelmente bom a jogar de cabeça o que não é habitual para um jogador criativo. Os clubes de elite aos quais tem sido associado (Liverpool, City, Barcelona, Bayern Munique, Real Madrid), além do dinheiro que deverá custar, são sintomáticos da combinação de toda a vertente do seu jogo: a inteligência que possui, a amplitude de atributos e a facilidade com que joga em diferentes posições”, avalia Webb.
Um fenómeno precoce que faz tudo bem
Para Havertz não há limites e se ainda antes da paragem imposta pela pandemia Bosz surpreendeu ao surgir em casa frente ao Eintracht com o jovem alemão a liderar a linha ofensiva, hoje é uma certeza que, ali, Havertz se sente como peixe na água. Em duas jornadas consecutivas após o início da competição na Alemanha, Havertz bisou, elevando a contagem pessoal para dez golos na Bundesliga desta temporada, a época em que se tornou o mais jovem capitão de sempre do histórico emblema germânico, onde há muito é já o mais jovem de sempre a marcar com aquele emblema ao peito.
Fazer história não é uma novidade para Kai Havertz. Falamos do jogador que mais cedo chegou aos cinquenta e cem jogos em toda a história da Bundesliga. O mesmo Havertz que se definiu como o jogador mais jovem da história da competição a chegar aos trinta golos precisamente no encontro frente ao Eintracht Frankfurt, que precedeu a interrupção na competição. Tinha 20 anos e 270 dias. Tudo isto num médio ofensivo, num criativo – daí as comparações com Özil e Ballack – que só agora surge adaptado à frente de ataque. Havertz faz um pouco de tudo e fá-lo com perfeição.
De Bernd Schuster a Toni Kroos, passando por nomes como Michael Ballack, Bernd Schneider, Carsten Ramelow ou mesmo Arturo Vidal, o leque de médios de classe mundial que passou pela BayArena ao longo das últimas décadas impressiona. Havertz, porém, parece surgir como a evolução final de todos estes. Como se ao longo da história o Bayer Leverkusen estivesse a preparar o protótipo perfeito de médio desequilibrador. Um seis, um oito, um dez e, agora, também ele, um nove goleador.
Aos 20 anos, Kai Havertz soma já sete internacionalizações pela Alemanha e assume-se cada vez mais como o rosto da nova geração do futebol no país. Os 20 golos em 42 jogos na temporada passada trouxeram-no para a ribalta, mas são os 14 em 36 jogos, quatro deles somente nos dois últimos jogos, que o elevam definitivamente a nova estrela planetária, uma daquelas que ameaça tomar o trono dos dois maiores astros que o futebol viu em muito tempo assim que estes padeçam da sua idade.
“Olhamos ao seu perfil, a experiência que já tem e a regularidade das suas exibições ao mais alto nível e é seguro ter-se a confiança de que é o real deal. Havertz tem-se estabelecido de forma consistente como um dos melhores jovens jogadores da atualidade no Leverkusen, o que é também um bom sinal já que teve de lidar com imensa responsabilidade desde cedo e foi capaz de o fazer com excelência. É óbvio que tem uma maturidade fora do normal que não vem apenas das suas exibições, mas do próprio carácter que possui enquanto pessoa”, conclui Webb, observador do Tottenham, ao Independent.
A mesma publicação destaca ainda as palavras de outro observador de um clube da elite do futebol acerca de Kai Havertz e a opinião pode começar a considerar-se unânime: Havertz é um prodígio. “Havertz combina todo o tipo de ações de passe com um movimento sem bola de excelência, lidando na perfeição com ambientes de elevada pressão. Tem todas as qualidades possíveis no capítulo do passe. Curto e longo, variando o eixo do jogo. É rápido e eficaz a executar passes ao primeiro toque em áreas apertadas e com isso eliminar eficazmente a ameaça de defensores adversários. Além disso é muito forte no transporte de bola, tem uma capacidade de decisão muito acima da média e independentemente das situações revela sempre uma grande frieza e compostura. Havertz é um finalizador de topo com um grande sentido posicional e inteligência para jogar entrelinhas e encontrar o espaço certo para receber a bola e construir jogo. Está sempre a ler e a analisar o jogo, algo apetecível para qualquer clube de elite que o irá sempre ver como uma mais valia. Tem uma grande capacidade técnica, é inteligente e afeta positivamente os jogos de forma constante. É capaz de jogar em qualquer posição e tem um desejo interminável de evoluir o que o torna um investimento bastante atrativo para qualquer clube”, avalia.
Para Kai Havertz 2019/20 é uma temporada de confirmação. Há seis jornadas consecutivas que ou marca ou assiste, tendo capitaneado o seu clube nos últimos cinco. Ao todo, em 36 jogos já disputados, Havertz soma 14 golos e 8 assistências, registo determinante para o quarto lugar ocupado atualmente pelos farmacêuticos, apenas um a menos do que o terceiro RB Leipzig, ou quatro do que o segundo classificado Borussia Dortmund. Um talento geracional que surge uma vez em muitos anos.
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