Ryan Gauld está destinado a voos bem mais altos do que a luta para evitar a despromoção que neste momento enfrenta com o Farense. Só resta saber se conseguirá singrar num grande. Depois de ter dado alguns passos atrás na carreira, o escocês de 25 anos regressou esta época à I Liga, transformando a equipa algarvia num “Gauld e mais dez”. A magia que tem nos pés serve de iluminação no São Luís para tentar escapar à escuridão da luta pela sobrevivência no campeonato. Essa mesma missão ganhou novo ânimo com o triunfo diante do Nacional (3-2), ontem, para o qual contribuiu com um golo. A importância do médio ofensivo não se resume a golos de calcanhar, assistências, ou prémios de homem do jogo. Evoluído desde os tempos em que ingressou no Sporting, com 18 anos, Gauld acrescentou à sua panóplia a componente defensiva e o compromisso dentro e fora das quatro linhas (já o ouviram a falar português?), que o conduziram inclusive à braçadeira de capitão em Faro. Será ele capaz de elevar o Farense à permanência?
Após ser o melhor jogador da II Liga, como já tínhamos dado conta há cerca de um ano, Gauld tem aproveitado esta nova época para se afirmar completamente no principal escalão português. Se antes existia a dúvida se ele seria, de facto, o jogador que todos adivinhavam quando ainda lhe chamavam ‘Baby Messi’… agora questiona-se se o talento do escocês não estará a ser desaproveitado na parte mais baixa da tabela classificativa. Os números comprovam que se destaca claramente dos demais colegas no Farense e que consegue mesmo chegar a patamares onde estão os melhores jogadores dos ditos clubes grandes. O registo que dá maior ênfase a esta tese é o seguinte: Gauld foi, a par de Corona, quem criou mais oportunidades de golo na primeira volta da Liga Portuguesa, ambos com 38, surgindo Quaresma na terceira posição com 32 (dados divulgados pelo Canal 11). E ainda há um Vitória SC-Farense em atraso para disputar, por isso não seria surpresa alguma se o escocês se isolar nesta lista.
As oportunidades de golo que cria, ao partir maioritariamente da posição de médio ofensivo, nem sempre são resolvidas da melhor forma pelos colegas, mas Gauld conta ainda quatro assistências nesta época. Para além disso, soma também já seis golos marcados (dois de grande penalidade). Ou seja, tem uma participação direta em 50 por cento dos golos do Farense (dez em 20). Fica no ar se conseguirá superar a marca de nove golos que obteve em 2019/20, a campanha mais concretizadora da sua carreira e a que o próprio jogador considera a melhor. “Foi a minha melhor época em termos de golos, mas foi também a melhor em número de jogos consecutivos. E aquela em que atuei mais vezes durante os 90 minutos do jogo. Nunca tinha feito tantos golos, que é aquilo que mais chama a atenção das pessoas. Ou seja, foi a melhor época em tudo, na qual bati várias marcas pessoais. Mas tudo isto já pertence ao passado, quero é continuar assim na Liga Portuguesa”, referiu em entrevista ao jornal O Jogo, no mês de setembro.
Queria continuar assim no principal escalão e a verdade é que tem conseguido. A quem duvida disso basta olhar para os seis prémios de Homem do Jogo que já recebeu da parte da Liga Portugal (contra Rio Ave na quinta jornada, B SAD na sexta, Boavista na sétima, Marítimo na nona, Santa Clara na 17ª e Nacional na 19ª) e nem é preciso que o Farense ganhe para isso acontecer, visto que habitualmente esses troféus até ficam com um jogador da equipa vencedora. Gauld está mesmo isolado neste parâmetro neste momento, visto que somente Pedro Gonçalves (Sporting) e Carlos Júnior (Santa Clara) se aproximam deste registo com cinco cada.


A juntar a esse reconhecimento, podemos recorrer também a ferramentas como o WhoScored, portal de estatísticas que coloca Gauld no pódio de melhores jogadores deste campeonato, com um rating de 7.41, somente atrás de Pedro Gonçalves (7.58) e Otávio (7.51). Igualmente no portal SofaScore surge em terceiro lugar (rating de 7.49), abaixo de Pote (7.56) e Sérgio Oliveira (7.56). É curioso, no mínimo surpreendente, que um jogador da equipa que ocupa a 15ª posição esteja tão destacado entre os grandes – se fosse alguém de uma das sensações da época, por exemplo o FC Paços de Ferreira, seria algo mais normal – e assim se percebe o impacto que tem no futebol dos leões de Faro.
Estatísticas de lado, Gauld acrescenta muito mais do que números. Confirmação disso mesmo foi o golo que apontou na receção ao Santa Clara, há pouco mais de uma semana. Um simples toque de calcanhar que tirou o guarda-redes Marco Pereira da fotografia e demonstrou a magia do escocês (o melhor é ver mesmo o vídeo abaixo). A qualidade técnica que tem também tem estado evidenciada nas bolas paradas, das quais é dono e senhor no Farense. Aliás, Gauld é mesmo o jogador da Liga Portuguesa que mais finalizações cria através de bola parada (1,5 por partida).
Esta afirmação, ou melhor, confirmação no principal escalão surge com base na consistência e o médio ofensivo é mesmo o elemento do Farense com mais minutos dentro das quatro linhas. Os 1.606 minutos em jogo fazem com que seja o décimo jogador de campo do campeonato com mais tempo no relvado, atrás de nomes como Coates (1.739), Esgaio (1.723), Babic (1.720), Borevkovic (1.678), Porro (1.671), Rúben Lima (1.659), Rúben Fernandes (1.654), Dener (1.636) e Mbemba (1.635). Se juntarmos mais o jogo em atraso com o Vitória SC e visto que o mais provável, caso não aconteça algo inesperado, é que jogue o tempo todo, irá subir alguns lugares nesta lista.
Com este trajeto, são alguns os objetivos bem focados na mente de Gauld: primeiro, chegar a voos mais altos. “A minha ambição é, um dia, jogar por equipas de topo na Europa”, chegou a referir em declarações ao jornal britânico The Courier em setembro. No entanto, o jogador de 25 anos sabe que “para isso acontecer, tenho de fazer um excelente trabalho no Farense”. A posteriori, a tão cobiçada chamada à seleção, pela qual ainda não tem qualquer internacionalização. “Se perguntares a algum escocês, é um sonho – aquilo que sempre quiseste fazer, jogar pelo teu país. Ainda tenho a esperança de que se continuar neste caminho, nunca se sabe, vir a conseguir uma chamada e a oportunidade de ser convocado. Tudo o que posso fazer é trabalhar e esperar que esse dia chegue”, disse Gauld em entrevista ao The Dode Fox Podcast. Aos 18 anos, ainda chegou a ser convocado para compromissos com a Geórgia e a Polónia, mas não foi lançado em nenhum deles. Por isso mesmo, a ligação que tem às seleções escocesas é somente de camadas jovens (onze jogos pelos Sub-21, dez pelos Sub-19…).
Esta ‘candidatura’ à Escócia que fez com base no trabalho que ainda tem por realizar é um atestado da evolução de Gauld, que se verifica também naquilo que oferece à equipa em campo e não só no que toca ao momento ofensivo. O compromisso no processo defensivo também tem sido um fator determinante e mais incisivo no momento de pressão. É que entre todos os médios do campeonato, apenas João Palhinha e por curta margem, faz mais ações defensivas no último terço do terreno do que Gauld (1,2 por jogo, dados do Goalpoint). Gauld serve, assim, como uma das primeiras unidades a defender quando a equipa perde a bola e ainda bem afastado da própria baliza. O escocês junta a esse índice mais dois desarmes efetuados por partida.


Da defesa voltamos ao ataque, mais precisamente ao momento de posse. Gauld é um jogador para ter bola no pé, não há dúvidas quanto a isso, e passar grande parte do jogo sem o esférico pode ferir a capacidade de desequilibrar. O Farense é mesmo a equipa da Liga Portuguesa com menor percentagem de posse de bola (44,3%), algo com que o escocês até já está familiarizado. Para além disso, o conjunto algarvio tem ainda o pior registo no que concerne à taxa de sucesso de passes (69,6%), dado no qual curiosamente o escocês tem estado aquém das expetativas: tem apenas 68,6% de sucesso numa média de 23,6 passes por jogo. A explicação para este dado pode estar no facto de como o Farense não tem muita bola durante os encontros, quando a tem é muito usualmente em manobra contra-ofensiva ou de ataque rápido e por isso mesmo a probabilidade de erro na decisão crescer a olhos vistos. Apesar desse nível no acerto de passe, o escocês contabiliza 2,3 passes decisivos por jogo, o segundo melhor registo do campeonato a par de Corona (2,3) apenas abaixo de Luquinhas (2,4) – dados do portal Whoscored. Por outro lado, Gauld é o mais rematador do Farense com 2,2 tentativas a cada 90 minutos.
Com Gauld a parecer cada vez mais talhado para outras andanças, chegaram a surgir notícias de um eventual interesse do SC Braga no mercado de janeiro para o escocês render o lesionado Iuri Medeiros. O Record adiantou que apesar de já ter o escocês ‘reservado’ para o fim da temporada, os minhotos poderiam avançar já para a contratação, mas tal não aconteceu. Ainda assim, esse tal interesse poderá mesmo culminar num avanço durante o próximo verão, precisamente quando Gauld termina o atual contrato com o Farense. Só que esse vínculo poderá ser prolongado pelos algarvios por mais uma época, já que está explícita no contrato uma cláusula que contempla essa mesma opção para ser acionada. E seria de estranhar que o emblema de Faro não aproveitasse para segurar por mais um ano aquele que tem sido a sua principal figura, nem que seja para conseguir lucrar também financeiramente com uma transferência.
Numa temporada de regresso à elite nacional que tem sido algo penosa para o Farense e que já resultou na troca de Sérgio Vieira por Jorge Costa (já realizou três jogos, uma derrota, um empate e mais recente uma vitória) no comando técnico, há ouro no Algarve e dá pelo nome de Gauld. Já ficaram para trás os tempos de Sporting, marcados por poucas oportunidades e problemas de afirmação, assim como as vivências de empréstimos constantes a Vitória FC, CD Aves, Farense e Hibernian. Aos 25 anos, o escocês encontrou o espaço pelo qual lutou no principal escalão e o teto ainda está pequeno para aquilo que tem vindo a demonstrar seja pela qualidade do futebol jogado, as estatísticas e até mesmo o compromisso defensivo. Estamos agora perante um capitão, que tem esse estatuto não só por ser figura da equipa, mas também pelo caráter que transporta dentro e fora de campo e se quiserem confirmar basta perguntarem-lhe… ele responde em bom português.