Comecei ontem a publicar uma série de artigos acerca dos donos da bola no grande futebol, dando a conhecer quem manda nos 20 clubes da Premier League (pode ler aqui). As coisas não são bem como no tempo em que éramos miúdos, quando o dono da bola jogava sempre, escolhia a posição e podia até determinar o momento do apito final, mas em contrapartida nessa altura o que importava era o percurso, o que nos divertíamos, muito mais do que o resultado final. No futebol a sério, o resultado conta. E as conclusões a que facilmente se chega olhando para isto numa perspetiva global são deveras preocupantes, muito mais do que as derivadas daqueles últimos pensamentos antes de dormir, por não termos podido continuar o jogo no baldio em frente a casa quando era quase certo que íamos fazer o golo da nossa vida ou safar uma bola impossível com um voo de pássaro.
Não sou um daqueles poetas lamechas que lamentam a morte do futebol-puro, sem dinheiro envolvido. Até porque ele continua vivo, sempre que juntamos os amigos num relvado à volta de uma bola, quando vamos ver o jogo do clube da terra, que compete na terceira divisão distrital, ou quando nos invadem as redes sociais com vídeos das Sunday Leagues britânicas, com jogadores que batem um penalti e a seguir se encostam às barreiras a beber uma cerveja. Cada coisa tem o seu espaço e o futebol altamente profissionalizado e globalizado não tem de ser romântico – querer isso é o mesmo que exigir ir de Lisboa ao Porto de carroça, contra os exageros da indústria automóvel ou dos construtores de autoestradas. Uma parvoíce que até tem o seu público mas mostra uma assustadora falta de noção. Este futebol não tem de ser romântico. O que tem é de ser sério. E, devido à falta de escrutínio face ao grande capital, muitas vezes não é.
Querem um exemplo? Ele veio ontem de França. Nasser al-Khelaifi, presidente do Paris Saint-Germain, CEO da Qatar Sports Investments, o fundo de investimentos ligado ao governo do Qatar que comprou o clube, e patrão do beIN Media Group, foi designado pela Assembleia da Liga como negociador-chefe para convencer o Canal Plus a pagar os 110 milhões de euros que o operador devia pagar aos clubes já na próxima segunda-feira, 5 de Abril, como parte do negócio das transmissões em direto dos jogos da Ligue 1. E qual é o problema? É que o Canal Plus e a beIN Sports fecharam há pouco mais de um mês um acordo que permitirá ao primeiro transmitir os conteúdos do segundo em França por um período de cinco anos. Tal como em muitos negócios no futebol globalizado de hoje, al-Khelaifi estará a negociar tendo interesses dos dois lados da contenda. E apesar de isso representar um conflito evidente, não houve na assembleia da Liga quem votasse contra esta escolha.
Quando confrontados com os negócios do grande futebol de hoje, os leitores preocupados costumam enveredar por um de dois caminhos. Os românticos disparam contra a FIFA, atiram contra a UEFA, pedem o regresso do jogo ao início do século passado, como se o Mundo pudesse travar a entrada de dinheiro em qualquer área da sociedade que o atraia. “Isto era bom era quando se jogava por amor à camisola”, dizem. Esqueçam. E enquanto ainda não se esqueceram tentem explicar isso a qualquer jogador dos anos 70 ou 80, daqueles que ficaram com os joelhos feitos em papa e, apesar de terem sido profissionais, não têm hoje um pé de meia que se veja. Isso não vai acontecer no futebol enquanto não acontecer em qualquer outra indústria – só a falência total da civilização ocidental em que vivemos nos encaminharia para aí.
Os mais desconfiados apontam o dedo à “máfia”, mas acabam por ser ingénuos ao ponto de achar que estas coisas só acontecem no futebol, simplesmente porque não entregam paixão a mais nenhuma área da sociedade. Há portistas e benfiquistas a reclamarem dos esquemas dos adversários, mas não há adeptos das maiores petrolíferas, dos fundos de investimento mais avultados ou dos bancos mais renomados a acusarem-se uns aos outros. A questão é que, como mostraram as revelações dos Panama Papers, este não é um problema exclusivo do futebol. É um problema da sociedade, onde o sucesso passa tantas vezes pela capacidade de esconder o trilho do dinheiro. O futebol, aqui, apanha por tabela. E precisa de encontrar forma de escrutinar o seu dinheiro.