A Assembleia-Geral que aprovou as contas do Sporting, muito à tangente e apenas graças ao peso da antiguidade nos votos do menor número de apoiantes face aos opositores, foi apenas mais um ponto no enredo de uma novela interminável cujo fim não está à vista. Como em muitos diferendos entre casais que não se entendem, o que interessa não é perceber quem tem a culpa do ambiente hostil em torno do executivo liderado por Frederico Varandas, mas sim descobrir a forma de lhe pôr cobro, de pacificar o clube para que todos possam viver felizes para sempre. E bastaria ver a forma como o presidente respondia com beijinhos aos insultos e aos pedidos de demissão para perceber que, não, ao contrário do que Varandas disse, a pergunta acerca das condições que ele ainda terá – ou não – para continuar no cargo não era “ridícula”.
As contas foram aprovadas, é verdade, e como bem disse o presidente da mesa da Assembleia Geral, Rogério Alves, mesmo que o não fossem isso não significaria que o clube tivesse de ir para novas eleições. Além disso, ainda que tenha demorado, o Sporting acaba de conseguir uma renegociação da dívida à banca que já deixou os rivais a estrebuchar, sinal de que deve ter sido a primeira vitória real deste executivo – sim, que em termos de decisões no futebol já estamos mais do que conversados. Como não me parece possível que, tal como foi ontem sugerido por um sócio, o Sporting anunciasse um acordo inexistente com a banca e chegasse ao desplante de o comunicar à CMVM – nem Vale e Azevedo, na sua louca fuga para a frente, alguma vez chegou tão longe – este pode ser um bom ponto de partida para a direção promover um momento de reflexão profunda de que o Sporting continua a precisar muito.
Frederico Varandas está há um ano na presidência e, apesar das derrotas constantes que o futebol lhe tem trazido desde Agosto, das muitas decisões erradas quanto a treinadores e no mercado de transferências, terá agora um palanque estável de onde pode colocar tudo o que fez em causa. Convém mesmo que o faça e que ponha para trás das costas a comunicação um pouco autista que caraterizou as suas últimas intervenções. Sousa Cintra, o antigo líder do clube que esteve à frente da Comissão de Gestão, pode até personificar, no discurso gasto e feito de frases feitas aprendidas na “universidade da vida”, o homem que “não tem jeito para ser presidente”, mas a reação de Varandas aos apupos no final da AG foi o momento de maior falta de sentido de estado de que me lembro no clube desde o “bardamerda para quem não é do Sporting” dito por Bruno de Carvalho.
E isso também devia fazer Frederico Varandas pensar. Porque além de alguns dos seus apoiantes estarem a adotar os métodos e a intolerância que foi herança do “brunismo” – como se viu nos confrontos entre adeptos nas bancadas – é ele que agora começa a ter tiques do seu antecessor.
A pergunta feita a Varandas – se sente que tem condições para continuar – não é, ao contrário do que o presidente afirmou, “ridícula”. Não vou ao ponto de dizer que não tem condições para continuar. Sei, evidentemente, que são injustos os gritos de “ditador” que o presidente ouviu na AG de ontem, porque se ele está onde está é porque foi legitimado pela maioria dos votos – e nem me interessa se estes correspondem ou não aos votos da maioria, porque esse sistema de valorização da antiguidade está em vigor no clube desde que o conheço. Mas é para mim claro que o clube precisa hoje de um momento de reflexão profunda, que até pode passar por novas eleições, mas que devia ser, pelo menos, um congresso diferente do habitual congresso leonino, um local onde se admitissem todas as fações, onde tudo fosse posto em causa de forma séria e proativa.
Porque, se é de culpa que querem falar, é preciso desenterrar todos os esqueletos do jardim. As políticas de secundarização do futebol face aos outros negócios do tempo de Roquette; a incapacidade de acompanhar os níveis de investimento dos rivais, que deixou o clube só dependente da formação com Soares Franco; a falta de noção e a secundarização do clube face a parceiros que foi promovida tanto por Bettencourt como por Godinho Lopes; a defesa da intolerância e do ódio à diferença como base do populismo promovido por Bruno de Carvalho. Tudo isso está em causa hoje, quando se discute a inabilidade de Varandas para gerir o futebol do clube. Tudo isso contribui para um Sporting estilhaçado e impossível de unir.
Nestas coisas, não há receitas mágicas. Há apenas uma forma de “Unir o Sporting”, que era o lema de Varandas e que é muito diferente do brutal aumento dos níveis de militância que foi a marca da era de Bruno de Carvalho. O presidente anterior não uniu – arregimentou. Contra o Benfica, contra os “croquetes”, contra os “sportingados”, contra Jorge Mendes e os fundos, contra a Liga e a Federação, a partir de determinada altura contra os jornalistas, os jogadores e os treinadores também. O facto de os que ficaram até ao fim ainda serem tantos e capazes de perturbar o curso normal de um clube tão grande, devia fazer pensar quem manda, devia ser mais uma razão para se promover essa tal reflexão profunda em vez de se ficarem pela condenação imediata.
Para unir o Sporting, faltou a Bruno de Carvalho uma coisa de que Varandas está ainda mais longe do que ele alguma vez esteve: ganhar. Para responder à pergunta ontem feita a Varandas, o que é preciso pensar é se o clube tem hoje mais condições para o conseguir. E projetar com realismo se e quando poderá vir a tê-las e o que é que precisa de ser posto em causa. É isso que importa no Sporting de hoje.