A noção de atividades indispensáveis ao normal decorrer da vida humana é elástica e sempre subjetiva. Há, por exemplo, quem se revolte por ver os jornais serem ditos indispensáveis e as lojas de venda a retalho serem forçadas a fechar. E há muito quem se indigne com todas as tentativas que o futebol tem feito para regressar, por enquanto ainda apenas em fase de projeto, de conversações destinadas a encontrar a melhor solução. Nestes casos, o “eu quero lá saber de futebóis” é o mais meigo que se vai ouvindo e lendo, muitas vezes rodeado de impropérios que são impublicáveis. Mas, como em todas as áreas de atividade, o futebol vai precisar de regressar para pagar as contas e cumprir as suas responsabilidades. Falta perceber como – e aqui há que ser razoável.
Já se viu de tudo. Desde a revolta contra a possibilidade de se fazerem jogos à porta fechada ao oportunismo dos que acham que, se assim for, as operadoras que têm o direito para os transmitir deviam oferecê-los em canal aberto – como se não tivessem também elas contas para pagar. Desde a proposta de manter os plantéis em estágio e isolamento permanentes, como se os jogadores não tivessem direito à vida em família e fossem chamados para uma guerra, a outras, mais razoáveis, de os submeter a testes a cada três dias, obrigando os que fossem declarados positivos – mas não os colegas que com eles estiveram ou os adversários que os defrontaram – a quarentena. Desde a conclusão das épocas em curso em super-mega-torneios, com todas as equipas no mesmo espaço num período o mais curto possível, ao estabelecimento de regras claras para as deslocações – sempre em autocarro próprio e no dia do jogo, para evitar o recurso a transportes públicos e hotéis.
No fundo, o futebol tem um problema. É um espetáculo, mas também é um negócio. E como já ficou mais ou menos estabelecido que o Atalanta-Valência CF, dos oitavos-de-final da Liga dos Campeões, foi uma autêntica bomba biológica, responsável pelos elevados índices de infetados nas duas regiões de Itália e Espanha, já se percebeu que enquanto não houver uma vacina não é possível compatibilizar as duas vertentes. Ora, dizem os virologistas que uma vacina não nasce do pé para a mão – é preciso testar, expor grupos de indivíduos saudáveis ao vírus dando a uns a potencial vacina e a outros um placebo, o que ninguém quer fazer enquanto se estiver no topo do planalto da pandemia – o que significa que se 2019/20 está em risco de não acabar, 2020/21 será uma época futebolística atípica, diferente de tudo o que conhecemos. E é aqui que é preciso fazer cedências.
Já disse várias vezes que o futebol deve ser para os espectadores no estádio e não para a TV, mas estes serão tempos especiais. É tão razoável que se pretenda o regresso do jogo, porque os jogadores precisam de trabalhar tanto como os escriturários ou os operários têxteis, como o é que se encontre a forma mais segura possível para o fazer. E esta passará sempre pelo atropelo ao espírito do jogo, afastando o público; pelo atropelo aos direitos individuais dos jogadores, reduzindo-lhes salários, impondo-lhes testes regulares e limitando-lhes a vida em sociedade; pelo atropelo às expectativas de receita de clubes, operadores de TV, sponsors, agentes de jogadores e toda a gente que circula à volta da economia do futebol, porque não há quem vá sair disto a rir. Esse é o futebol do futuro e, acreditem, é isso ou parar e mandar toda esta gente para o desemprego. Porque a verdade é que ninguém de bom senso está em condições de discordar do “eu quero lá saber do futebol” quando o que estiver no outro prato da balança for a saúde.