É muito curioso que antes do Sérvia-Portugal tenham chovido críticas a Fernando Santos por estar a montar “um onze demasiado defensivo”, com “dois trincos”, mas que depois a seleção tenha sofrido mais do que o suposto precisamente por falta de capacidade de ocupação dos espaços nos momentos de organização e transição defensivas. Como o jogo é uno, separar essas dificuldades das exigências colocadas por um ataque muito móvel seria ignorar um aspeto fundamental na definição daquilo que foi a partida de Belgrado. Portugal ganhou bem, por 4-2, mas Santos terá ainda de trabalhar muito os posicionamentos se quer encarar com otimismo a fase final do Europeu’2020 e adversários mais poderosos usando esta ideia que, no Marakana, conduziu ao abandono de Danilo num imenso latifúndio, uma herdade de muito espaço verde onde mandava Tadic e, em consequência disso, à exposição excessiva dos laterais. O jogo na Lituânia não deve chegar para avaliar este problema, mas a visita a Kiev, no mês que vem, será um bom teste.
A ideia de jogo de Portugal começava nas fases com bola, onde a equipa se definia um pouco em função dos espaços que Ronaldo optava por ocupar em cada momento. Se o capitão se ficava pelo meio, Guedes deveria partir da esquerda. Se o capitão optava por cair na esquerda, Guedes tinha como incumbência ocupar o meio.


Se o capitão optava por se juntar a Bernardo na direita ou baixar para ajudar na zona de criação, o vazio na área acentuava-se e obrigava a entradas sem bola de William ou Bruno Fernandes, que por falta de caraterísticas para tal, poucas vezes invadiam as zonas de finalização, de forma a permitir a multiplicação de opções de remate.


Isto levou a um início de jogo mais dominador da equipa portuguesa, com muitos momentos de organização ofensiva, sobretudo pelos corredores laterais para onde os sérvios nos empurravam, mas sem grandes ocasiões de golo, por força da falta de números na área, que é onde se finaliza.


A Sérvia, já o escrevi (e também dava para perceber nas imagens acima), respondia à iniciativa de Portugal com uma rígida organização defensiva, em bloco médio-baixo, com o lateral do lado contrário ao da bola a fechar sempre por dentro, recuo simultâneo do extremo para ocupar o corredor desocupado e com os dois médios posicionais sempre muito próximos um do outro.


Isto tinha dois objetivos. Primeiro, ocupar o espaço interior à frente da defesa, impedindo os criativos de Portugal de ligarem o jogo por dentro e convidando a equipa nacional a jogar por fora – o que foi quase sempre conseguido. Depois, preparar desde logo o momento da transição ofensiva, alargando o espaço que defini como a “herdade de Tadic”, o tal imenso latifúndio no qual era relativamente fácil ao 10 sérvio fugir da presença de Danilo, sempre desamparado com toda a largura do campo para cobrir. Ainda por cima quando, no momento de recuperação de bola, não só os extremos (Lazovic e Kostic) disparavam por ali acima como um dos dois médios-centro ia logo dar linha de passe ao outro nas costas da linha de quatro portuguesa, criando condições para que a pressão lusa se tornasse ineficaz.


O que o jogo mostrou, na segunda metade do primeiro tempo, foi sobretudo a dificuldade dos laterais portugueses controlarem a profundidade atrás das costas, mas o problema tinha origem mais à frente, na forma como Tadic tinha sempre tempo e espaço para os ativar e no facto de eles estarem de frente para a zona que tinham de atacar, enquanto aos laterais de Portugal era pedido que se virassem. O problema, para Portugal, tinha ainda mais acuidade em transição do que em organização, porque a seleção nacional tentou definir uma primeira linha de pressão agressiva, com a linha de quatro médios (Bernardo, William, Bruno e Guedes) a tentar dificultar a saída de bola ao adversário. Conseguiu fazê-lo muitas vezes, mas como essa primeira linha não era devidamente acompanhada pelo avanço do resto da equipa e não era propriamente um modelo de disciplina na ocupação do espaço, isso ainda veio contribuir mais para o alargamento da “herdade de Tadic”, elemento cuja influência no jogo só teve paralelo na exibição de Bernardo Silva por Portugal.
A Sérvia conseguiu nessa altura meter vários contra-ataques, que só não tiveram melhor desfecho (pior, na perspetiva portuguesa) por falta de capacidade dos seus executantes. Mas o espaço para Tadic jogar era também muito em momentos mais pausados do jogo, em organização ofensiva dos sérvios, como se vê na imagem abaixo – que vem contrariar a teoria dos “dois trincos” que tanto espaço ganhou nas redes sociais antes, durante e até (pasme-se) depois do jogo. Mesmo que a realidade a contrarie de forma tão evidente.


Claro que as coisas não são só boas ou más. Se o golo inaugural de Portugal – a partir do qual começou a definir-se a sorte do jogo – até foi algo fortuito, pela forma como o guarda-redes Dmitrovic chocou com o seu companheiro e deixou a bola à mercê de William, ele foi também fruto deste posicionamento do meio-campo português: se William estivesse mais baixo, a par de Danilo, em 4x2x3x1, dificilmente chegaria à área no momento em que o outro médio, Bruno Fernandes, preparava o cruzamento para aquela zona. E isso deixaria mais uma vez Ronaldo sozinho perante toda a defesa sérvia, a depender ainda mais da sorte para finalizar, uma vez que para a criação da triangulação que levou ao cruzamento Portugal teria de envolver três homens no corredor lateral e o extremo do lado oposto ficava quase sempre à espera de uma segunda bola.


A ganhar, Portugal pôde encarar o jogo de outra forma. E, mesmo não tendo a Sérvia mudado de atitude antes do 0-2 (na verdade, a mudança ocorreu apenas quando o adormecimento da zona defensiva portuguesa num canto levou ao 1-2), os problemas em transição e organização defensivas foram-se mantendo para a seleção nacional, tão brilhante com bola nesta fase de um maior adiantamento do adversário, já com João Félix em campo, como incapaz de acompanhar as acelerações de jogo do adversário por causa de deficiências de posicionamento que urge corrigir.