A história do Deportivo Corunha é de ascensão, lágrimas, glória, festejos, projeção europeia e travessia no deserto, que culminou agora com a queda ao abismo que é o terceiro escalão do futebol espanhol. Para quem se lembra do Super Dépor dos anos 90, uma equipa que que conquistou o título espanhol na viragem do século, fica difícil perceber como tudo pôde mudar tão rapidamente. As gentes da Galiza que um dia viram o seu clube ser David para os Golias que eram FC Barcelona e Real Madrid, ficam a partir de agora privadas dos tempos áureos de outrora com uma descida de divisão que ficou marcada por polémica e que o próprio Deportivo já contestou. Longe vão os dias de Bebeto, Mauro Silva e Fran, Rivaldo, Flávio Conceição e Renaldo, ou de Makaay e Djalminha no Riazor, tudo concretizado pelo obreiro Augusto César Lendoiro, cuja história se confunde com a do Deportivo.
Foi na passada segunda-feira que o Deportivo viu confirmada a descida ao terceiro escalão espanhol e até mesmo sem entrar em campo. A receção dos galegos ao CF Fuenlabrada, da última jornada da Segunda Liga Espanhola (para a qual o conjunto de Corunha entrava ainda com possibilidades de permanência, mas sem depender apenas de si próprio), teve de ser adiada por vários casos positivos de Covid-19 no clube da província de Madrid. As restantes partidas realizaram-se e com o somatório dos resultados, ficou impossível a manutenção para o Deportivo, que ainda assim quer ver repetida a derradeira ronda, pois considera que se trata de uma “violação dos princípios da competitividade, igualdade e do fair-play”, pelo facto de todos os encontros não se terem realizado no mesmo dia e horas. “O que foi feito foi errado. As últimas duas jornadas são disputadas sempre à mesma hora e isso acontece por alguma razão”, referiu Richard Barral, diretor desportivo da equipa, em conferência de imprensa na terça-feira.
A resposta por parte das instâncias que gerem os campeonatos espanhóis foi destacadamente negativa. “Evidentemente não se vai repetir”, atirou Javier Tebas, presidente da La Liga, em relação à última ronda do segundo escalão. O dirigente recordou que o organismo já tinha avisado “há três ou quatro semanas” para a possibilidade de que com a pandemia “ser dado o alarme e poder dar-se um problema em algum jogo”.
No entanto, o Deportivo ainda se sente de Segunda Liga, tal foi o sentimento ecoado pelo treinador Fernando Vázquez. “Estou convencido que somos equipa de Segunda, é de justiça. Vamos tentar que se anule a jornada. Voltar a jogá-la parece materialmente impossível e aqueles que se enganaram devem pagar as consequências. Há provas de que a competição está adulterada. E quem tomou essa decisão deve ter capacidade para dar um passo atrás”, referiu o técnico em conferência na quinta-feira. Vázquez considera que aumentar o segundo escalão de 22 para 24 equipas seria a solução ideal a adotar. “Só uma pessoa pensa que em Espanha (o segundo escalão) não pode ser de 24 equipas. Em Espanha há clubes e capitais de província com capacidade para ter uma equipa na Segunda. Aliás, o Championship em Inglaterra acaba em maio. Assim, porque não 24 clubes? Até mesmo sempre com 24, porque há equipas com capacidade. É uma decisão política. Dizem que poderia haver um problema com as divisões dos direitos televisivos, mas penso que quanto mais jornadas melhor para as televisões também. É uma questão de vontade”, rematou Fernando Vázquez.
Enquanto o Deportivo está nestas andanças de tentar alterar aquilo que parece irremediável, há quem lamente a queda de um histórico a proporções tão baixas. Bruno Gama passou por Corunha entre 2011 e 2013 e depois de 2016 a 2017 e mostrou-se incrédulo com o que aconteceu ao Deportivo. “O que me deixa mais triste é saber que as pessoas provavelmente estão a sofrer. Já passaram dois anos desde que saí de lá, mas o sentimento que tenho pelo clube é muito forte, passei lá dos melhores momentos da minha carreira. Estou bastante triste com esta situação. Se a descida acontecer, claro que é um choque muito grande. Ninguém poderia esperar uma coisa destas de uma instituição como o Deportivo. Deve estar a ser muito complicado lidar com esta situação…”, disse o extremo do Aris em declarações à agência Lusa.
Com um nome que carrega mais nostalgia no Deportivo, Djalminha ainda não assentou bem a ideia de que os galegos vão jogar na Segunda Divisão B espanhola. “Ainda não acredito, estou muito triste com o que aconteceu”, começou por referir a antiga glória brasileira à Marca. Ainda assim, é de coragem a mensagem transmitida pelo ex-internacional brasileiro. “Nestas circunstâncias é difícil dar ânimo aos desportistas, mas força ao clube para que se reconstrua e crie uma boa estrutura para voltar à elite. Esta equipa deve estar rapidamente no primeiro escalão e disputando os lugares que merece, não apenas a tentar a permanência. A Segunda B vai ser muito complicada. É muito difícil estar nesse escalão, mas o Deportivo nunca vai abaixo e estou seguro de que voltaremos”, destacou Djalminha, campeão espanhol pelo Deportivo em 2000, naquela que foi a recompensa pelo trabalho levado a cabo por um presidente que queria fazer frente ao poder da capital e da Catalunha.


Lendoiro, o implacável negociador com olho para o Brasil
Foi em 1988 que a história do Deportivo começou a mudar e nesse ano poucos aguardavam aquilo que estava por vir. Depois de passagens pela presidência do Ural, um clube amador da Galiza, e o HC Liceo, equipa de hóquei em patins, na qual conquistou vários troféus espanhóis e europeus, Augusto César Lendoiro tornou-se líder do Deportivo. A verdade é que Lendoiro nem se mostrava muito tentado a pegar no leme do clube, que na altura tentava não cair da Segunda Divisão B e contava com uma dívida a rondar os três milhões de euros. O dirigente acabou por assumir a presidência sem serem sequer necessárias eleições… bastou o apoio de cerca de 1500 assinaturas. E como um anjo caído do céu apareceu num momento de desespero para salvar um clube da ruína e erguê-lo até voos nunca dantes conhecidos.
Passados três anos, em 1991, já o Deportivo estava de regresso à Liga Espanhola, onde já não andava desde 1973, e juntou a isso a criação de uma SAD. Lendoiro recorreu a Arsenio Iglesias, um homem da casa e com vida de Deportivo, para ser o treinador da equipa. Como qualquer emblema que acaba de subir ao principal escalão, é expectável que na mente esteja a permanência acima de tudo, mas o presidente tinha olhos e barriga para muito mais que isso. “Em 1991, nós subimos e diante de 20 mil pessoas na Plaza María Pita, eu disse: ‘Barcelona, Real Madrid… nós estamos aqui’. Todos se riram de mim, diziam que eu era maluco. Mas foi um presságio. De 1993 a 2005 lutámos contra eles de igual para igual”, chegou a referir Lendoiro.
Essa profecia acabou por ser completada, mas não logo, pois na primeira temporada teve de assegurar a manutenção apenas no play-off de descida/subida. Em 1992/93 é que o mundo dos galegos deu uma volta total. Tudo começou com duas contratações que poderiam ser muito bem inexplicáveis naquele tempo. É certo que Bebeto e Mauro Silva, em 1992, ainda não eram tão conhecidos no desporto rei como acabaram por ser. No entanto, a aquisição de ambos chocou meio mundo e tudo por culpa de Lendoiro. Reza a lenda que o presidente viajou até ao Brasil para falar com Bebeto e que convenceu a mulher do ex-futebolista de que as praias na Corunha eram parecidas às de Copacabana, ao invés da Alemanha, onde o frio faria com que não fossem tão felizes – Bebeto teria acordo quase assinado com o Borussia Dortmund. A estratégia de Lendoiro funcionou, para gáudio do povo da Corunha. “Às vezes começávamos às 22h e fechávamos o acordo à meia-noite. Durante a noite negoceias melhor, ninguém te incomoda”, confidenciou o dirigente em tempos, citado pelo portal FutbolRetro.


O Deportivo passou, assim, de modesto a candidato ao título, mas não foi nos momentos de ouro que colheu os frutos. Ora vejamos… em 1992/93 até acabou a primeira volta do campeonato na liderança, mas perdeu gás na segunda e ficou-se pelo terceiro lugar, que valeu ainda assim o primeiro apuramento europeu para disputar a Taça UEFA. Na temporada seguinte, deu-se um dos momentos de maior infelicidade para o clube, talvez até mais do que esta descida ao terceiro escalão. O Depor entrou para a última jornada da Liga Espanhola de 1993/94 com a possibilidade de ser campeão. Bastava repetir contra o Valência CF o resultado do Barcelona, de Johann Cruyff, perante o Sevilha FC. Os catalães cumpriram e o Deportivo também o poderia ter feito, mas Djukic virou vilão e falhou um penálti aos 90 minutos, que impediu os galegos de festejarem o título. “Foi o momento mais triste da minha vida”, disse o antigo defesa sérvio na altura.
Ainda houve a conquista da Taça do Rei em 1994/95, o primeiro grande troféu do clube, mas parecia que a oportunidade para ser campeão tinha escapado das mãos. Iglesias acabou por sair no fim dessa época e a sucessão de John Toshak foi uma missão falhada (nono lugar). Carlos Alberto Silva também não reuniu consenso na passagem pelo Riazor e foi preciso chegar Javier Irureta em 1998 para tudo voltar a entrar nos eixos. Entretanto tinham saído Bebeto, Liaño e Rekarte, com as chegadas de Rivaldo, Flávio Conceição, Naybet e Renaldo.
Mas foi já sem Rivaldo e com Makaay, Djalminha, Jokanovic, Victor Sánchez, Jaime Fernández e Pauleta que se deu a glória. Em 1999/00, o Deportivo sagrou-se campeão espanhol, num plantel onde Mauro Silva, Fran e Donato ainda resistiam dos tempos do Super Dépor. O futebol da equipa era bem menos brilhante e cativante do que nos tempos de Bebeto, com mais derrotas também, num campeonato onde foi campeã com apenas 69 pontos. “Nestas duas décadas não se voltou a dar outros casos assim. Já sabemos como vai a Liga Espanhola. Há duas, três equipas… houve o Valência que já tinha conquistado o título, mas nenhuma equipa se sagrou campeã pela primeira vez desde então”, referiu Irureta em entrevista ao diário AS, em maio deste ano.


Embora não tenha conseguido repetir o feito do virar do século, o Deportivo não se ficou por aí em termos de fazer história. “Não foi apenas ganhar essa Liga. Chegámos lá acima e fomos primeiros, segundos durante dois anos e terceiros nos dois seguintes. Houve mudanças durante esses anos, vendas e compras porque tens de equilibrar as contas e às vezes acertas nisso e noutras não. São coisas que podem debilitar. Ganhar é certo que foi um feito importante, mas para mim o mais importante foram os cinco anos na Liga dos Campeões. E tivemos vitórias como as de Paris, Manchester, contra o Arsenal… fomos a única equipa espanhola que venceu o Bayern Munique no Olímpico. Não é uma flor de um dia”, defendeu Irureta.
Quem não se lembra daquela Champions de 2003/04? A que o FC Porto conquistou frente ao AS Mónaco depois de deixar para trás o Deportivo nas meias-finais. O caminho dos espanhóis até lá foi de sonho, com o português Jorge Andrade nas fileiras. Os galegos quiseram ser carrascos dos italianos nessa temporada e eliminaram a Juventus sem espinhas nos oitavos de final. Depois apareceu o Milan nos ‘quartos’ e tudo parecia perdido quando os rossoneri venceram por 4-1 na primeira mão em Itália. O Deportivo acreditou e os 4-0 aplicados no segundo encontro resultaram na passagem às meias-finais, onde foram eliminados pelo FC Porto à justa (nulo na primeira mão e 1-0 para os dragões na segunda).
A queda gradual de um histórico
Irureta saiu em 2005 depois de um oitavo lugar no campeonato e a eliminação na fase de grupos da Champions, hino da qual o Deportivo não mais ouviu tocar. Desde então, o melhor que conseguiu na Liga Espanhola foi um sétimo lugar em 2008/09, orientado por Miguel Lotina. O emblema da Corunha começou gradualmente a ser de meio da tabela, até que em 2011 aconteceu o que muitos, durante a glória dos anos 90, já não esperavam ser possível. O Deportivo caiu ao segundo escalão e durante quatro épocas andou a saltar entre a La Liga e a Segunda. Entre 2014 e 2018 andou a lutar para evitar cair novamente, o que acabou por acontecer, sendo que em 2018/19 até esteve perto de subir, mas acabou por falhar no play-off.
Este constante deambular entre o primeiro e o segundo escalão revelou-se fatal para a saúde financeira do Deportivo. A diminuição das receitas televisivas foi um fator fulcral para que o emblema galego tenha ficado com dívidas avultadas e dificuldades para as pagar. Logo em 2009, Lendoiro confessava os erros cometidos. “O meu grande erro foi não ter vendido os jogadores quando pude, mas o sonho era ganhar títulos. Agora, tenho de procurar soluções para os problemas derivados desse objetivo. Mas como cantam os adeptos: ‘Como me vou esquecer que o Deportivo conquistou a Liga, se foi o melhor que se passou na minha vida?'”, referiu o então presidente ao El País. “Só seria possível repetir o Super Dépor se Barcelona e Real Madrid fossem como naquela época e não como agora, que têm 500 milhões de euros para gastar. É preciso equilíbrio económico… e um milagre.”
O Deportivo teve de estar a concurso de credores e em risco de falência com Lendoiro acusado de uma política “alheada da realidade, assumindo gastos e inversões em múltiplos aspetos por quantias absolutamente distantes das possibilidades económicas da sociedade”. Esta situação culminou com a saída de Lendoiro da presidência em janeiro de 2014, com Tino Fernández eleito para a sucessão. Chegou, assim, ao fim uma relação de 25 anos entre Deportivo e Lendoiro, que em tempos assumiu ter estado perto de contratar Deco, Cristiano Ronaldo e Quaresma. Antes de Lendoiro, “o Deportivo era só o Corunha”, disse o próprio. E em pleno 2020, longe vão os dias do Super Dépor que encantou o mundo do futebol com uma história digna de conto de fadas.
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