Quando Fábio Martins resolveu usar as redes sociais para criticar a música com que a Sport TV decidira brindar os seus espectadores na ponta final dos jogos da Liga pós-quarentena, é provável que não o tenha feito com intenções “políticas”. Isto é, que aquele tweet tenha sido um desabafo e não uma intenção de realmente mudar as coisas. A verdade é que conseguiu: o canal que transmite a Liga já não incluiu a música no Marítimo-Gil Vicente de ontem. Este foi apenas um exemplo inocente do poder que os jogadores de futebol têm e que pode ser usado de múltiplas formas. Como desabafo, como meio de fazer negócio ou com intenções muito construtivas, como tem estado a provar Marcus Rashford, atacante do Manchester United que está empenhadíssimo na campanha #maketheuturn, destinada a convencer o governo de Boris Johnson a manter durante as férias os vouchers de refeições grátis nas escolas para crianças de famílias menos abonadas.
Para se meter numa coisa destas, um futebolista tem de ter opinião – como Fábio Martins –, precisa de a direcionar para coisas que contem realmente mais do que a música da Sport TV e ainda de ter um exército de seguidores verdadeiramente relevante. Fábio Martins tem quatro mil seguidores no Twitter, 15 mil no Facebook e 36 mil no Instagram. Uma proporção que significa que vive num país onde as aparências contam muito mais do que as opiniões e, mais, onde o facto de se ter opinião é muitas vezes penalizador. Rashford tem 8,4 milhões de seguidores no Instagram, 2,7 milhões no Twitter e 1,2 milhões no Facebook. E usou-os a sua influência – ganha dentro de campo – para propagar uma opinião que conta. A carta aberta que Rashford escreveu a todos os deputados do parlamento inglês, a pedir que o programa de vouchers de refeições gratuitas nas escolas não seja interrompido nas férias de Verão, que o atacante publicou no The Times e considerou “maior do que o futebol”, vai, à hora a que escrevo, com 85 mil retweets em 31 horas. Teve ainda 115 partilhas no Facebook, menos dado a essas coisas de intervenção social.
“Quando acordares hoje de manhã e abrires o chuveiro, perde um segundo a pensar nos pais que tiveram a água cortada nesta quarentena. Quando ligares a chaleira para fazer uma caneca de chá ou café, pensa nos pais que tiveram de deixar para trás os pagamentos da conta da eletricidade por terem perdido os empregos durante a pandemia. E quando te dirigires ao frigorífico para ir buscar o leite, para e reconhece que os pais de pelos menos 200 mil crianças neste país acordaram hoje e olharam para prateleiras vazias. Reconhece que há crianças por todo o país a perguntar inocentemente ‘porquê’ hoje de manhã. Nove em cada 30 crianças em qualquer sala de aulas estão hoje a perguntar ‘porquê?’ ‘Porque é que o nosso futuro não importa?’”, tweetou Rashford já hoje de manhã, a dar continuação a uma campanha que está a ter um sucesso retumbante e pode de facto ser importante numa mudança de política. Na mudança de uma realidade que é muito mais importante do que o futebol.
É claro que, tendo provavelmente a inteligência, as ideias e se calhar até a vontade de arriscar capital político, Fábio Martins não tem a capacidade de influenciar tanto como Rashford. E é claro também que a audiência das redes sociais não está sempre virada para assuntos como a consciência cívica: o último tweet de Cristiano Ronaldo, mostrando uma foto do jogador a apanhar sol, com o texto “Get some Vitamin D”, teve 10 mil retweets em 13 horas, 6 mil partilhas no Facebook e 6,5 milhões de likes no Instagram (contra 300 mil da carta aberta de Rashford). As redes são, para os jogadores e quem lhes gere as carreiras, sobretudo formas de negócio, de mostrar patrocinadores, de veicular e fabricar pormenores da vida privada e até de prestar declarações, porque hoje em dia já chegámos ao momento zero da vacuidade em que vemos notícias de jornal a dizer simplesmente que o jogador A brincou com o jogador B no Instagram. A questão é que podem ser mais do que isso. Podem ser uma forma de tornar o Mundo melhor, como percebeu Fábio Martins com a música da Sport TV. Agora é só alargar o conceito a coisas que sejam mais relevantes. Como fez Rashford.
Parabéns aos dois.
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