Em França há um novo fenómeno a emergir. Por esta altura, nenhum outro nome ligado ao futebol é tão destacado quanto o de Eduardo Camavinga, jovem de 16 anos que saltou para a ribalta depois de uma exibição impressionante perante o Paris Saint-Germain. Camavinga não é virgem nisto dos picos de popularidade: afinal, já na época passada aparecera em praticamente todas as publicações desportivas gaulesas, depois de se ter tornado no primeiro jogador nascido em 2002 a estrear-se numa das cinco principais ligas do futebol mundial. Para o jovem médio angolano, nem o céu parece ser limite.
Camavinga tinha 16 anos e um mês na altura em que se tornou, também, o jogador mais jovem de sempre a alinhar pelo Stade Rennes. Algo que muito significa, dada a importância do clube bretão no panorama futebolístico francês: é o atual vencedor da Taça de França e, entretanto, finalista vencido da Supertaça. Camavinga foi titular na derrota na Supertaça, mas foi dias mais tarde que se deu, definitivamente, a conhecer. Diz quem o conhece que tudo até podia nunca ter acontecido, porque o médio tinha outro amor: o judo. Acabou por ser a mãe a convencê-lo a deixar as artes marciais para se dedicar exclusivamente ao futebol.
“Ele praticava judo. Não era para alguma vez ter jogado futebol, pois ele nem sequer queria. Mas como viviam num bairro perto do estádio e ele partia tudo a jogar futebol dentro de casa, a mãe convenceu-o”, contou Nicolas Martinais, amigo próximo da família Camavinga à imprensa francesa. Camavinga tinha um par de anos quando a família se estabeleceu em França, mas nem sempre o clã foi feliz no país de adoção, já que pouco tempo após a chegada viu um incêndio consumir-lhe a casa que havia construído. A família passou a viver da solidariedade vizinha e o pai, Celestino, depositou todo o futuro nas mãos de Eduardo. “Eduardo, tu és a esperança desta família. És tu que a vais fazer crescer”, confidenciou também Martinais.
Nascido 16 anos, em Miconje, nos arredores de Cabinda, de ascendência congolesa, terceiro de seis filhos, repita Camavinga nova exibição como aquela que rubricou perante o PSG de forma consistente, então, dentro de poucos anos, podemos perfeitamente estar a falar do melhor jogador angolano a não atuar pela seleção do seu país. Em França desde os dois anos, não é surpresa que esteja já a ultimar um processo de naturalização que lhe concederá também passaporte francês, abrindo-lhe assim a possibilidade de representar os gauleses, um objetivo de carreira, conforme adianta o L’Équipe.
“Nunca tinha visto um talento assim e com tamanhas qualidades. Quando precisávamos de segurar um resultado, colocávamo-lo na defesa. Se precisássemos de marcar um golo, metíamo-lo no ataque. Ele sempre teve a capacidade para desempenhar ambas as funções”, afirmou à imprensa francesa Jo Burel, primeiro treinador de Camavinga, então com seis anos, no AGL-Drapeau Fougeres.
A velocidade, versatilidade, sobriedade e calma com a bola nos pés suscitou rapidamente o interesse de grandes clubes e, aos 11 anos, Camavinga ingressou na academia do Stade Rennes, clube parceiro do AGL-Drapeau Fougeres. Ali, não tardou a impor a sua qualidade, chamando desde logo a atenção de Julian Stéphan, na altura treinador das camadas jovens e da equipa de reservas do Rennes. Não surpreendeu, por isso, que a chegada de Camavinga à equipa principal do clube bretão tenha acontecido tão cedo. O mesmo Stéphan é hoje o treinador da equipa do Rennes.
Ascensão meteórica e performances de elite
A ascensão de Camavinga tem sido meteórica nos últimos meses. Os seus dezasseis anos tinham apenas um mês quando se tornou no jogador mais novo da história do Rennes a ser blindado com um contrato profissional. Poucos meses mais tarde, em abril de 2019, fez a estreia oficial pelo clube num empate a três golos perante o Angers – o mesmo clube contra o qual se tinha estreado Ousmane Dembélé. Ai o destino… A primeira titularidade chegou frente ao AS Mónaco, um mês mais tarde, tornando Camavinga no primeiro jogador de 2002 a ser titular numa das cinco principais ligas mundiais.
Curiosamente, ou não, a titularidade de Camavinga no Rennes acabou por coincidir com uma ponta final de temporada fortíssima do clube bretão, com quatro jogos consecutivos sem perder para a Liga com duas vitórias nos dois últimos jogos de 2018/19 (RC Estrasburgo e LOSC Lille). O médio ficou, ainda assim, fora das escolhas de Stéphan para a final da Taça de França, que o Rennes acabou por vencer nas grandes penalidades, frente ao PSG.
Para Stéphan, Camavinga tem um potencial inesgotável. Onde pode chegar dependerá somente dele. O técnico do Rennes, porém, adverte que é preciso cuidado nesta fase: “Camavinga é um rapaz talentoso que eu conheço muito bem das equipas jovens do Rennes. Mas é um jogador muito jovem que terá de ser protegido. Não podemos esquecer-nos que tem apenas 16 anos e ainda está em fase de desenvolvimento muscular, desabituado ao ritmo e à intensidade do futebol profissional. Por isso, teremos de o proteger e ele terá de continuar a trabalhar. Mas tem, naturalmente, imenso talento”, afirmou há dias o técnico francês.

Talento é coisa que não falta a Camavinga. Se frente ao Montpellier, na estreia desta temporada, dominou o meio campo, apesar da inferioridade numérica em que o Rennes disputou parte do jogo, tendo falhado apenas um dos 41 passes que tentou, foi frente ao PSG, à segunda jornada, que Camavinga ascendeu ao Olimpo do futebol, com uma exibição de antologia. Encheu o meio campo, voltou a falhar apenas um passe (97% de acerto, 100% de acerto em bolas longas), venceu 10 de 16 duelos disputados e, com a assistência feita no encontro, foi fundamental para a vitória do Rennes sobre o campeão francês. Uma assistência que, aliás, o tornou no jogador mais jovem de sempre a rubricar um passe para golo na I Divisão francesa, e que lhe permitiu ser eleito o melhor em campo.

Os números de Camavinga seriam impressionantes em qualquer situação, mas assumem contornos de relevância extra por terem sido desempenhados por um jovem de 16 anos, ainda para mais, começando esta a ser uma recorrência. Apesar da tenra idade, Camavinga impressiona pela maturidade em campo, pela inteligência tática/posicional, pela mobilidade e por nunca ceder sob pressão. Disso é exemplo o acerto de passe impressionante que regista de forma regular, mas, mais do que isso, algo que não é possível quantificar estatisticamente: a tomada de decisão, identificando quase sempre se a melhor forma de tornar a posse progressiva está no passe ou se, por outro lado, o momento pede que se progrida em condução, bem como o espaço a preencher quando não se encontra com a bola nos pés. Seja para equilibrar defensivamente a equipa, seja para dar a melhor linha de passe a um companheiro.
Quando a cabeça tem juízo…
Nada disto surpreende os antigos treinadores, que elogiam a sobriedade da personalidade de Camavinga. Um rapaz repleto de maturidade para alguém tão novo, profissional, que nunca se atrasa para um treino. Tímido, modesto e sem qualquer mania da grandeza, apesar de todo o aparato que vai causando devido à qualidade. “Ele sabe bem de onde vem e pelo que a família teve de passar para aqui chegar”, recorda um dos antigos treinadores. Stéphan fala mesmo de um jovem altamente educado, respeitador das principais figuras do balneário e sempre atento aos conselhos dos mais experientes.
Utilizado maioritariamente como médio mais defensivo e com permissão limitada para avançar no terreno e ser criativo, Camavinga tem as características necessárias para vir a ser um médio de transição de elite no futuro. Pela mobilidade que apresenta, pela dinâmica que incute, pela capacidade de passe e progressão aliada a uma grande facilidade no roubo de bola que até já o levaram a ser comparado a N’Golo Kanté por parte da imprensa e da própria opinião pública. Um jogador repleto de energia, inteligência tática e posicional que se revela na acertada leitura de jogo, maturidade e segurança com a bola nos pés.
E se não acredita em nós… “Ele é muito forte na recuperação de bola. É muito rápido a surgir aos pés dos adversários. Tem uma grande intensidade. Além disso, tem pernas para se projetar na frente, uma capacidade técnica muito acima da média, ainda que tenha por onde evoluir, como na capacidade de remate. O seu pé direito também precisa de ser trabalhado, atualmente é quase exclusivamente canhoto. Mas tem imensas qualidades e faz sentido que aos 16 anos ainda não seja o produto acabado. Vou falar com ele para que evolua em condições de serenidade”, afirmou à Ouest-France o treinador do Rennes.
Com o ocaso da carreira de Cristiano Ronaldo e Lionel Messi cada vez mais próximo, multiplicam-se pelo mundo do futebol as apostas acerca da próxima “big thing” do futebol internacional. Exibições de encher o olho neste início de temporada, aproximam Eduardo Camavinga de nomes como Mbappé, Félix ou Havertz como possíveis futuros sucessores no trono. Em Rennes e cada vez mais em toda a França começam a restar poucas dúvidas: Camavinga tem tudo para lá chegar.
O novo produto de uma das melhores academias de formação do Mundo
A ascensão de Camavinga volta a reforçar o Stade Rennes como uma das melhores academias de formação, não só de França, mas de todo o Mundo. Ao longo dos anos têm sido vários os jogadores de elite a saírem das camadas jovens do clube bretão, parecendo Camavinga, neste momento, elevar-se a digno sucessor de Ousmane Dembélé como principal produto recente da formação do Rennes. Dembélé, recorde-se, surgiu na equipa principal do Rennes em 2015, rumou um ano depois ao Borussia Dortmund a troco de quinze milhões de euros, antes de protagonizar uma das maiores transferências da história do futebol mundial, quando reforçou o FC Barcelona por 125 milhões de Euros.
Ao longo dos últimos anos não faltaram, aliás, jogadores oriundos da formação do Rennes a protagonizar transferências mediáticas e a fazer movimentar milhões de euros, como foram os casos de Tiemoué Bakayoko, Abdoulaye Doucouré, Yacine Brahimi, Yann M’Vila, Joris Gnagnon, Jimmy Briand, Wesley Saïd ou Yoann Gourcuff em anos mais recentes, mas também Sylvain Wiltord, Mikaël Silvestre, Moussa Sow, Stephane Mbia, em temporadas mais antigas. Um clube habituado a abrir espaço aos jovens talentos, já que por exemplo, também Petr Cech, agarrou o lugar na baliza do Rennes quando tinha 21 anos.