Pode a ideia de jogo ser condicionada pelo valor do adversário? Ao ver a forma como Portugal mudou radicalmente a sua ideia perante uma Lituânia que será provavelmente o opositor mais fraco que encontrou nos últimos anos, seríamos tentados a dizer que sim, mas a verdade é que isso não faz muito sentido. Uma equipa de futebol tem diversas componentes táticas e estratégicas, cada adversário pode levar a determinadas especificidades, mas antes de tudo vem a identidade – e essa não muda. Uma equipa que tem gente capaz de ter a bola, que é capaz de engatar combinações e alternar jogo por dentro e por fora para levar a situações de finalização, como foi o Portugal inspirado por Bernardo Silva no jogo de ontem, não se transforma por obra e graça do espírito santo noutra que baixa linhas e procura sobretudo explorar o erro do adversário em ataque rápido e contra-ataque a não ser por ter uma noção errada (e pequena) da sua própria identidade.
É evidente que contra um adversário mais forte seria impossível a Portugal alinhar com Cristiano Ronaldo, Gonçalo Paciência, Pizzi, Bernardo Silva e Bruno Fernandes em simultâneo ou soltar tanto os laterais mas o que está aqui em causa não é isso. Não é sequer o 4x3x3 do costume ou o 4x1x3x2 de ontem. O que está aqui em causa são os comportamentos que se pedem aos jogadores: se combinam ou jogam mais direto; se procuram zonas de finalização e as ocupam ou se escapam para zonas menos quentes; se se disponibilizam entre linhas e em mobilidade constante ou se amarram temendo a desorganização no momento da perda da bola. E isso, sim, também tem a ver com as escolhas que se fazem. Porque não é a mesma coisa jogar com Gonçalo Paciência a atacar a área ou Gonçalo Guedes a fechar o corredor, da mesma forma que não é a mesma coisa ter como médio-âncora Rúben Neves ou Danilo, ou que é muito diferente soltar Bernardo Silva no corredor central ou pedir-lhe que jogue a partir da direita e ter William a ocupar aquele mesmo espaço. Não é por uns serem mais ofensivos e outros mais defensivos. É por serem diferentes.
Portugal fez ontem o jogo de maior qualidade ofensiva dos últimos anos e, sim, muito fica explicado pela falta de qualidade do adversário. Mas boa parte do segredo do cofre esteve no facto de a seleção ter querido fazer um jogo de grande qualidade ofensiva. E a pergunta que se coloca vai muito para lá do 4x3x3 ou do 4x1x3x2. A pergunta é: que equipa quer Portugal ser? Quer ser a equipa solidária, forte defensivamente e na exploração do ataque rápido e do contra-ataque, à qual é por isso muito difícil ganhar e que por isso mesmo venceu o Europeu de 2016 sem ter o melhor plantel ou sequer o melhor onze? Ou quer ser uma equipa ofensivamente atraente, em consonância com as caraterísticas de jogadores como Bernardo Silva, mas também Gonçalo Paciência, mesmo que isso lhe custe alguns dissabores em noites nas quais o adversário seja capaz de lhe expor debilidades defensivas que todas as equipas de ataque acabam por ter?
A resposta não é fácil, sobretudo porque Fernando Santos já provou que é possível ter sucesso com a receita anterior. Ser poeta com estas coisas é fácil, sobretudo quando se está do lado de fora. Mas se começa a ser difícil justificar a subalternização do talento à organização férrea, isso tornar-se-á de todo impossível quando deixar de haver Ronaldo para mascarar e resolver a solo jogos mais complicados e a equipa precisar de fazer uso de outros argumentos.