Vivem-se dias de alívio e satisfação para muitos adeptos do FC Barcelona. Terminou o reinado de Josep María Bartomeu na presidência do clube catalão, após demissão apresentada pelo próprio. Depois de seis anos com altos e muitos baixos e uma relação cada vez mais tóxica com o núcleo duro do plantel, a confusão gerada com Messi e a quebra da promessa que tinha feito ao astro argentino foram a gota de água num oceano de escândalos que motivou uma moção de censura. Bartomeu tentou impedir a votação dessa moção em duas ocasiões, mas ao ver esse desejo negado optou por abdicar do cargo. A saída de Bartomeu era um fim já anunciado e encarada por muitos na Catalunha como o único cenário possível.
Foi na noite de terça-feira que Bartomeu anunciou a demissão da presidência do FC Barcelona. Com ele seguiu toda a direção. A decisão surgiu com base na moção de censura que se aproximava a passos largos, apenas a terceira em toda a história do clube (as outras aconteceram a Joan Laporta em 2008 e a Josep Lluís Núñez em 1998). Primeiro, Bartomeu tentou resguardar-se e recorreu à Guardia Civil, alegando falsificação de assinaturas entre as 20.731 conseguidas (a moção necessitava de 16.521 para ser admitida). Como tal não foi avante, remeteu à Generalitat (sistema institucional da Catalunha) a suspensão da votação por constrangimentos provocados pela pandemia de Covid-19 para a execução da mesma. À segunda vez, também não conseguiu o que queria. Assim, decidiu não esperar e sair pelo próprio pé.
“Apresento-me para anunciar a minha demissão e a do resto do conselho de administração. É uma decisão considerada por todos. Esta manhã recebi a resposta do Governo da Generalitat, que reitera não haver impedimentos jurídicos para celebrar o voto de censura. Isto significa que se exige a descentralização do voto e não mencionam a nossa proposta de ter 15 dias de margem para poder garantir as medidas de segurança necessárias”, referiu Bartomeu no discurso de demissão.
Curiosamente, esta nem foi a primeira moção de censura tentada contra Bartomeu. Em 2017, Agustí Benedito impulsionou uma, mas acabou por não ir avante. Agora, com Jordi Farré – um dos pré-candidatos às eleições de 2021, assim como Víctor Font e Lluís Fernádez Alà, que também apoiaram a moção – como principal dinamizador, a tentativa de destituição foi para a frente e nem foi necessário realizar-se. Esta moção de censura nasceu poucos dias após Messi dar conta da decisão de rescindir contrato unilateralmente com o Barcelona, situação que os adeptos culés queriam impedir, não fosse o argentino a figura histórica que é na Catalunha.
Messi e o anúncio mais inesperado
O mundo do futebol ficou em choque depois de Messi anunciar que pretendia deixar o Barcelona apesar de ainda ter contrato até 2021. As conquistas cada vez mais distantes, assim como resultados aquém do esperado na europa (humilhação de 8-2 diante do Bayern Munique nas meias-finais da Champions na época passada; eliminações com Liverpool FC e AS Roma depois de estar a ganhar as eliminatórias; não chegar à final da competição desde 2014/15) e a falta de um projeto da parte da direção culminaram na decisão de Messi. No entanto, não houve saída, ao contrário do que Messi disse ter acordado com o então presidente Bartomeu.


“Eu tinha a certeza de que estava livre para sair, o presidente sempre disse que no fim da temporada podia decidir sair ou ficar. Não cumpriu a sua palavra. Disse ao clube, inclusivamente ao presidente que queria sair. Disse-lhe isso durante todo o ano. Percebi que era altura para sair. O clube precisa de jogadores mais jovens, jogadores novos e vi que o meu tempo no Barcelona estava a acabar. Com muita pena, porque sempre disse que queria acabar a carreira no Barcelona”, confidenciou Messi em setembro numa entrevista ao portal Goal. O argentino defendia-se com uma cláusula no contrato que lhe permitia sair sem custos caso fosse ativada até 10 de junho. Só que o prolongar da temporada, devido à pandemia, fez com que os catalães ainda estivessem a disputar o campeonato e a Champions nesse momento. E foi aí que deu problema. “Eles agarram-se ao facto de eu não ter dito nada até 10 de junho”, apontou ainda Messi, ao revelar que a permanência foi contra a própria vontade. “Essa é a razão pela qual vou continuar no clube. Vou continuar no clube porque o presidente disse-me que a única forma de sair é pagando os 700 milhões de euros da cláusula e isso é impossível.”
Com esta época a ser apontada como a última de Messi no clube, a demissão de Bartomeu levanta as esperanças dos adeptos para que o coração do argentino fale agora mais alto. Até o próprio dirigente confidenciou esperar que a sua saída leve Messi a ficar. “Sempre tentei explicar a Messi, ao seu agente e à sua família que não o poderia deixar partir. Porquê? Estamos a falar do melhor jogador do mundo e porque começámos um novo projeto com o Ronald Koeman, onde ele é a chave. Espero que nos próximos meses ele diga que está orgulhoso por ficar no Barcelona: ‘Vou renovar e terminar a minha carreira no Barcelona’”, disse Bartomeu na sequência da demissão. Do lado de Messi ainda não houve resposta nem reação.
Redução salarial, Piqué contestatário e o ‘BarçaGate’
O problema com Messi foi apenas um dos vários escândalos que abalaram o Barcelona e principalmente Bartomeu neste fatídico ano de 2020. O mais recente prendia-se com salários. A pandemia de Covid-19 afetou gravemente o mundo do desporto rei e o Barcelona teve perdas milionárias. Por isso mesmo, o clube até reduziu os salários dos jogadores em 70 por cento no mês de março e durante alguns tempos. Bartomeu tentou novo corte salarial no mês de outubro, desta feita de 30 por cento em jogadores e funcionários, só que a medida não foi bem recebida pelos capitães.
Piqué esteve no centro do turbilhão pois, como um dos capitães – acompanhado por Messi, Busquets e Sergi Roberto -, assinou uma carta a criticar a proposta da direção, mas fê-lo exatamente no mesmo dia em que renovou contrato com o clube, gesto que foi visto como “traição” dentro do balneário, de acordo com o diário Marca. Ainda assim, o central quis provar que estava mesmo contra a direção de Bartomeu e lançou duras palavras. “Como presidente teria agido de forma diferente. Pedi a Messi que aguentasse. Não falei muito com ele nesses dias porque acho que era uma decisão pessoal. Eu pergunto-me: como é que o melhor jogador da história se levanta um dia e tem de enviar um fax ao clube porque sente que não está a ser escutado? É tudo demasiado chocante. O que está a acontecer? Messi merece tudo. O novo estádio deve ter o seu nome, só depois o do patrocinador. Devemos preservar as nossas figuras, não as desprestigiar. É uma situação que me deixa nervoso. Surpreende-me que pessoas como Pep Guardiola, Puyol, Xavi ou Valdés não estejam no clube. Há algo que não está a ser bem feito. Pessoas como estas fazem parte do clube, fizeram muito pelo clube. Deviam estar aqui”, reiterou Piqué em entrevista ao La Vanguardia.


O próprio Bartomeu comentou a questão salarial após dar a conhecer a demissão e considera que caso o assunto não fique tratado poderá ter consequências graves para o clube. “Foi uma honra servir ao clube, como dirigente e como presidente. Tentei assumir o cargo com responsabilidade e honestidade. Espero que nos próximos dias seja encerrado o reajuste salarial, o que se não for feito pode ter sérias consequências para o clube. Esperançosamente há um acordo de todas as partes. Podemos dizer com orgulho que somos o melhor clube do mundo em valor. Conseguimos isso mantendo o clube nas mãos dos sócios.”
A verdade é que a relação entre Bartomeu e o plantel da equipa principal era tóxica e não havia volta a dar. Para isso muito contribuiu o proclamado ‘BarçaGate’. Quem não está familiarizado com essa expressão, veio a público em fevereiro quando a rádio Cadena Ser avançou que a direção do emblema da cidade condal tinha contratado uma empresa de comunicação (13Ventures) para defender Bartomeu e desprestigiar os jogadores da equipa nas redes sociais. A tese levantada era a de que tinham dado cerca de um milhão de euros para os ataques pessoais a jogadores e até às famílias nas redes sociais. Bartomeu negou a situação e o escândalo acalmou, mas voltou a ganhar repercussões passados dois meses quando seis membros da direção apresentaram a demissão por discordâncias com o presidente e pelo caso do ‘BarçaGate’. “Devemos destacar também nosso desencanto com o lamentável episódio das redes sociais, conhecido como ‘BarçaGate’, do qual fomos conhecedores pela imprensa”, pôde ler-se na carta publicada pelos elementos demissionários.
O triplete de glória e o caso Neymar
Fora todas confusões, houve momentos de glória. O principal em 2014/15 quando o Barcelona orientado por Luis Enrique conquistou o triplete de Liga dos Campeões, campeonato espanhol e Taça do Rei. Foi uma temporada memorável, a última Orelhuda erguida pelos catalães e a primeira desde que Pep Guardiola o tinha feito pela segunda vez em 2010/11. Nesse plantel de 2014/15 figurava aquele tido por muitos como o melhor tridente ofensivo da história do futebol constituído por Messi, Suárez e Neymar. Precisamente, o internacional brasileiro foi outro dos pontos de discórdia do reinado de Bartomeu em Camp Nou, muito por culpa da forma como o jogador saiu do clube.
Até a contratação de Neymar deu problemas ao Barcelona, mas esses vinham ainda do tempo de Sandro Rossell como presidente, ao qual Bartomeu sucedeu, pois era o ‘vice’ aquando da demissão de Rossell em 2014 – no ano seguinte ganhou as eleições a Joan Laporta. Em 2015, Bartomeu e Rossell foram levados a tribunal por delitos fiscais e administração danosa na contratação de Neymar. Bartomeu e Rossell conseguiram a exoneração no caso e foi o clube dado como culpado e a ter de pagar 5,5 milhões de euros de multa. Assim como a contratação, também a saída de Neymar acabou por piorar a imagem de Bartomeu. A gestão tida pela direção do Barça na situação ficou mal vista aos olhos dos adeptos. De recordar que foi o próprio Neymar a pagar a cláusula de rescisão de 222 milhões de euros à federação espanhola para rumar ao Paris Saint-Germain. Também dá para questionar como o clube não se tinha lembrado que nos tempos atuais do futebol poderia haver alguém com disponibilidade para pagar essa quantia.


Bartomeu chegou à presidência do Barcelona na sequência de uma demissão e é exatamente dessa forma que deixa o clube após um mar de escândalos cujo fim estava mais do que anunciado. O futuro dos catalães a breve termo passa por Carles Tusquets, que era o responsável pela comissão económica do clube e fica à frente da comissão gestora do clube até às eleições. O prazo para um ato eleitoral é no máximo 90 dias após a demissão, mas Tusquets não quer acelerar demais o processo. “Não aceitaremos pressões para convocar as eleições num momento inadequado”, disse Tusquets em conferência de imprensa. Até agora são conhecidas as pretensões de Jordi Farré, Víctor Font e Lluís Fernández Alá para a sucessão a Bartomeu na presidência do Barcelona. Todos com a missão de recolocar o clube nos tempos de glória e fora das confusões que já viveu.