A recente ascensão da Atalanta é uma das histórias mais apaixonantes do futebol europeu. Clube com nome proveniente da mitologia grega, o emblema de Bergamo está à beira de chegar aos quartos de final da Liga dos Campeões em ano de estreia na competição. Seria, assim, o culminar de um trajeto a romper com a tradição italiana e assente na filosofia de um treinador, Gian Piero Gasperini, que mudou o paradigma da equipa. Em 2014/15 a Atalanta teve um pé no segundo escalão de Itália… mas cinco anos depois já não sabe o que é estar fora da elite.
Fundado em 1907, o clube tem nome inspirado numa personagem da mitologia grega: Atalanta é associada ao desporto e à disponibilidade física. Conta a lenda que o pai de Atalanta queria apenas ter filhos e que por isso abandonou a recém-nascida no topo de uma montanha. Criada por ursos, tornou-se caçadora, sendo descrita como uma lutadora forte e rápida. Ora, pode traçar-se um paralelismo entre esta lenda de perseverança e sobrevivência contra todas as probabilidades com a campanha do clube de Bergamo nesta Liga dos Campeões.
O terceiro lugar conseguido na Liga Italiana na época passada – melhor registo da equipa – resultou na primeira presença da Atalanta na fase de grupos da Champions. E a verdade é que este feito inédito pareceu ser de pouca duração, por momentos. É que o conjunto comandado por Gasperini perdeu os três primeiros encontros do agrupamento, nos quais consentiu onze golos. A grande parte atiraria a toalha ao chão, mas não foi isso que esta equipa fez. Um empate contra o Manchester City na quarta jornada abriu lugar para a esperança e a vitória diante do Dínamo Zagreb fez com que entrasse para o último compromisso com possibilidade de seguir em frente. Os 3-0 diante do Shakhtar Donetsk de Luís Castro colocaram a Atalanta nos oitavos de final da prova.
Sendo a ‘outsider’ da fase a eliminar da prova milionária, a Atalanta encontrou pela frente uma equipa que também não tem o estatuto de ‘tubarão’, mais precisamente o Valência CF. A primeira mão teve lugar no passado dia 19 e os italianos despacharam os espanhóis com um 4-1 que resulta em pé e meio nos quartos de final da competição. Será a Atalanta a réplica do Ajax da temporada passada (chegou às ‘meias’ e esteve muito perto da final)? Esta questão já passou pela mente de muitos. Até existem semelhanças entre ambos, seja o orçamento mais reduzido comparado com outras equipas na competição, a atenção dada às camadas jovens e o tipo de futebol vistoso que praticam.
Uma filosofia a romper com a tradição
A Atalanta tem sido um modelo de gestão em tempos recentes e essa premissa fica comprovada com o facto de ter tido apenas três treinadores nos últimos dez anos. A equipa subiu ao primeiro escalão em 2011/12 e desde aí que andava pelos lugares abaixo da metade da tabela. Em 2014/15 evitou a descida por apenas três pontos, com Edy Reja a suceder a Stefano Colantuono no comando técnico para a salvar da despromoção. No entanto, foi em 2016/17 que tudo mudou. Gian Piero Gasperini foi contratado para a posição de treinador e não mais a vida deste clube foi igual.
Logo na primeira temporada ao leme da equipa, Gasperini alcançou a quarta posição do campeonato italiano – na altura bateu o melhor registo do clube na competição -, à qual se seguiram um sétimo lugar e a presença no pódio na temporada passada, novamente recorde.


A mudança de paradigma na Atalanta não se fez apenas na classificação, mas também nas ideias de jogo. Este clube é a representação perfeita daquilo que é romper com a tradição do futebol italiano, assente numa filosofia maioritariamente de consistência defensiva e não tão ofensiva. Com o melhor ataque do campeonato transalpino (63 golos), o emblema de Bergamo é o sexto com melhor índice ofensivo nas cinco principais ligas europeias, apenas atrás de Paris Saint-Germain (71), Manchester City (68), Bayern Munique (65), Borussia Dortmund (65) e Liverpool FC (64). Os quatro golos marcados ao Valência, na primeira mão dos oitavos da Champions, são prova disso mesmo. Para que se perceba o impacto ofensivo da Atalanta dentro das quatro linhas, a equipa é também aquela que mais remata nas Big-Five – 19,9 remates por partida (7,8 no alvo).
A força ofensiva da Atalanta é montada em nomes como Papu Gómez, Ilicic, Muriel e Zapata. O capitão Papu Gómez é o maestro lá na frente e conta com dez assistências e sete golos nesta temporada. O principal artilheiro da equipa é Ilicic, com 16 remates certeiros em 27 compromissos disputados. Muriel e Zapata apresentam também números de assinalar, com 13 e nove golos em 27 e 17 jogos, respetivamente. A jogar primordialmente com três defesas (Tolói, Palomino e Djimsiti), as alas estão entregues a Gosens e Hateboer. De Roon e Pasalic são os motores do centro do terreno de uma equipa que gosta de passar tempo em posse no meio-campo adversário. Esta combinação, segura pelas mãos de Gollini na baliza, catapultou a Atalanta novamente para lugares cimeiros em Itália, com a quarta posição da tabela após 24 jogos em 2019/20. Já para não falar do trajeto na Champions.
Na mente de Gasperini, ter mais homens a defender no último terço não é sinonimo de menos golos sofridos, muito pelo contrário. Para o técnico de 62 anos a estratégia passa por ter defesas fortes no momento ofensivo. “Ter superioridade numérica na defesa era visto como um dogma. Há uns anos, pelo Génova CFC, contra a Juventus, percebi que tinha o Burdisso, um marcador muito forte, e deixei-o a ele e ao De Maio contra o Tévez e o Llorente. Fizeram um grande jogo na marcação e eu ganhei um homem extra que podia entrar nas manobras ofensivas. Valeu a pena o risco. A lógica de ter defesas ofensivos, na Atalanta, veio dessa intuição. Com uma defesa a três posso defender quatro jogadores”, confidenciou recentemente Gasperini à ‘Gazzetta dello Sport’.
Sem qualquer título ao longo da carreira enquanto técnico, Gasperini esteve sempre por Itália: já passou por FC Crotone, Génova, Inter Milão (apenas quatro jogos…), Palermo e treinou as camadas jovens da Juventus. É fiel aos princípios e à filosofia que pretende ver no relvado e o tempo acabou por dar-lhe razão. Exemplo disso mesmo foi o início complicado nesta edição da Liga dos Campeões. Com três derrotas e vários golos consentidos, muitos treinadores poderiam optar por mudar para uma estratégia mais pragmática, mas Gasperini não é assim. Continuou a trabalhar naquilo em que acredita e agora é hora de colher os frutos.
Adeptos apaixonados desde o berço
San Siro foi palco de Liga dos Campeões no passado dia 19, mas não foi graças a Milan ou Inter Milão. O Estádio Atleti Azzurri d’Italia, reduto da Atalanta, não está dentro das normas da UEFA, então o emblema de Bergamo pediu casa emprestada na cidade vizinha. No entanto, isso não é impedimento para os adeptos, que são considerados como dos mais apaixonados pelo clube no mundo do desporto rei. Milão é considerada como uma segunda casa para os residentes da cidade que se situa na região da Lombardia.


A Atalanta é uma parte vital da cidade de Bergamo e todos os cidadãos são adeptos do clube desde o berço. É que todas as crianças recém-nascidas na região são presenteadas com uma camisola da equipa. É a forma perfeita de assegurar a continuidade da massa associativa e também a respetiva juventude. Por isso mesmo, este clube tem claques e ultras, conhecidos como a Curva Nord 1907, tão apaixonados, tal como se verifica nas coreografias que regularmente levam a cabo durante as partidas.
Este trajeto de ascensão recente da Atalanta continua como um autêntico conto de fadas que o futebol italiano nos deu a conhecer. Com a segunda mão dos oitavos de final da Liga dos Campeões em Valência marcada para o dia 10 de março, fica por saber se o emblema de Bergamo segue atrás de feitos inéditos e a romper com aquilo em que se pensa quando se ouve falar da estratégia de jogo de clubes transalpinos em competições europeias. Com os comandados de Gasperini em campo, o espetáculo está prometido.
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