Quem é Michael Edwards? O nome faz soar qualquer coisa, até por ser relativamente vulgar. Se for à Wikipedia, por exemplo, tem de ser específico e de entrar em desambiguações. Que Michael Edwards pretende? Há um jornalista, um especialista em perfumes, um pintor, um ator, três compositores, um músico, e um lote de antigos desportistas: um notabilizou-se no basquetebol, um no críquete, três no futebol americano, outros dois no futebol inglês, dois no atletismo, um no rugby, dois no basebol… Pois bem, não é nenhum desses. O Michael Edwards de quem lhe falo é diretor desportivo do Liverpool FC, foi o segredo atrás do sucesso dos norte-americanos do Fenway Sports Group no clube e tem um perfil tão baixo que nem sequer lhe criaram uma página de wikipédia.
Casado e com dois filhos, Michael Edwards começou por ser um futebolista com tendência para nerd dos números. Ou um nerd dos números que jogava futebol. A junção destas duas competências permitiu-lhe formar um cocktail tão explosivo que lhe garantiu uma ascensão meteórica nos gabinetes das equipas de futebol que representou. Desde que entrou no Portsmouth FC, em 2003, como analista, até hoje, esteve na retaguarda da conquista da Taça de Inglaterra pelo clube do sul, em 2008, do primeiro Top-4 alcançado pelo Tottenham em duas décadas, em 2010, e da construção de uma equipa temível, com a qual o Liverpool FC ganhou a Liga dos Campeões e o Mundial de clubes, em 2019, estando igualmente lançada para ser campeã inglesa antes da interrupção da Premier League por causa da Covid19. Tudo misturado com a assinatura em negócios que viriam a revelar-se extraordinários, como as aquisições de Salah, Mané ou Robertson., todos avaliados hoje em quatro ou cinco vezes aquilo que o Liverpool FC pagou por eles.
Até hoje, não se conhece uma entrevista dada por Michael Edwards. Não porque ele tenha algo contra a comunicação social, mas sobretudo porque crê que a publicitação do trabalho é, na sua área, contraproducente. Edwards até já esteve nos títulos dos jornais por razões inversas às que agora levam os media a falar dele, quando foi lançada uma petição a pedir a sua demissão, na sequência de negócios que não resultaram, como por exemplo a aquisição de Markovic, contratado ao Benfica por 25 milhões de euros, em Julho de 2014, quando ele ainda não tinha responsabilidade total sobre o departamento. Ou a de Aspas, por quem os reds pagaram 10 milhões de euros ao Celta, um ano antes. Mas é aí que entra em ação o papel do treinador. Atualmente, o gabinete de Edwards situa-se mesmo em frente do Jürgen Klopp, sendo que o alemão passa muito tempo no sofá do diretor desportivo, refastelado e com os pés em cima da mesa de centro. Com Brendan Rodgers, o treinador que antecedeu Klopp, a comunicação era inexistente. “Sempre achei que o diretor-técnico era o treinador”, explicava Rodgers, fazendo finca-pé na sua posição extremada e no facto de não fazer concessões.


Klopp não tem sempre a mesma opinião de Edwards. “Não, de facto”, confirma o treinador alemão. “Não temos a mesma opinião no início das conversas, mas geralmente chegamos a um consenso no final”, explica. Klopp não foi um entusiasta das contratações de Salah, que até já tinha fracassado em Inglaterra, ou de Mané, por quem os 41 milhões de euros pagos ao Southampton chegaram a parecer muito. Mas acabou por integrar os dois nos seus planos, aceitando a visão do diretor desportivo, que encontrava na decomposição dos números a receita para um ataque ideal. A associação Mané-Firmino-Salah existiu no computador de Michael Edwards muito antes de ser colocada à prova nos relvados. E, além dos títulos que a tripla ajudou a conseguir, só nesses três, a crer na avaliação do portal Transfermarkt, o clube quase triplicou o valor investido: todos custaram 41 milhões, mas hoje aquele site que serve de referência para os negócios de mercado avalia Salah e Mané em 120 milhões cada um e Firmino em 72 milhões.
O segredo do sucesso de Michael Edwards não é tanto a capacidade negocial, a associação a este ou àquele empresário ou uma capacidade premonitória acima do normal. Simplesmente, o diretor desportivo do Liverpool FC consegue juntar competências de futebolista, que foi, às de especialista em IT, onde obteve um nível superior. Foi, para muitos, como David James ou Peter Crouch, o primeiro nerd dos computadores que os jogadores levaram a sério, porque tinha a linguagem deles, aprendida nos anos que passou no balneário do Peterborough Utd. como aspirante a defesa-direito. E em Portsmouth, às segundas-feiras, quem queria ver os jogadores da equipa de Harry Redknapp já sabia que os encontraria no gabinete de Edwards, onde este os elucidava acerca das suas próprias estatísticas no jogo do sábado anterior. E eles aprendiam, sobretudo porque aceitavam o input do homem que estava ali colocado por uma então ainda insípida empresa de análises de dados, que era a ProZone.


Mas não nos adiantemos na história. Natural de Southampton, Michael Edwards começou por tentar ser futebolista. Chegou à equipa de juniores do Peterborough United, chegando a fazer meia-dúzia de desafios pelas reservas, mas em 1997, no ano da passagem a sénior, foi desenganado: “esquece, que o teu caminho não é por aqui”. “Era um bom jogador. Jogava como defesa-direito, mas também podia ser defesa-central. Tinha compostura com a bola nos pés, era agressivo e competitivo sem ela. E era forte mentalmente”, recordou Simon Wilson, antigo colega em Peterborough, ao Bleacher Report. Wilson recordou ainda um tipo “com uma maturidade anormal para a idade, mas com um sentido de humor particular”, o que o tornava numa espécie de “menino-querido dos treinadores” sem contudo o impedir de ser popular entre os colegas. O caminho de Edwards, no entanto, desviou-se do futebol com a dispensa: dali saiu para se inscrever na licenciatura em gestão de empresas e informática da Universidade de Sheffield. Acabou-a e ainda chegou a ser professor de liceu antes de ser novamente chamado ao jogo.
Isso aconteceu em 2003. Edwards tinha apenas 23 anos quando, apostada numa estratégia de criação de apelo pelos dados, a ProZone – hoje uma das mais afamadas empresas na área da estatística do futebol – decidiu colocar um dos seus especialistas junto de cada equipa da Premier League. Concorreu e ficou colocado no Portsmouth FC. Cabia-lhe ser uma espécie de interlocutor entre o clube e a empresa: fazia a análise dos adversários, mas também a dos eventuais alvos de mercado. Harry Redknapp, que era o treinador na altura, não começou logo por ser um adepto desta aproximação. Conta-se até – mas é possível que seja apenas mito urbano – que o técnico chegou a ridicularizar a “pancada” de Edwards pelos números, dizendo à frente de toda a gente que os CD-Rom que ele distribuía não serviam para nada, pois nem tocavam música quando ele os colocava no leitor do carro. Mas Edwards ganhou o respeito de um treinador conservador – como todos os ingleses – por outro lado. Pelo lado dos jogadores. Era um miúdo que se vestia e falava como um jogador, mas que lhes dizia coisas que eles não sabiam e que, além do mais, se divertia com eles: em Portsmouth, por exemplo, criou um jogo de prognósticos para a Liga dos Campeões que mexia com todo o plantel.
Ora Redknapp podia ser conservador mas não era estúpido e a dada altura começou a pedir a Edwards que falasse nas preleções que antecediam os jogos, para chamar a atenção acerca de detalhes do adversário. E essa terá sido uma das razões a justificar os históricos nono (em 2006/07) e oitavo lugares (em 2007/08), bem como a vitória do Portsmouth FC na Taça de Inglaterra nessa mesma época. Harry Redknapp saiu para o Tottenham logo nessa altura e Edwards seguiu-o, ajudando o clube londrino a terminar a época nos quatro primeiros (em 2010) pela primeira vez desde 1990. No final dessa época, o Fenway Sports Group, que é dono também dos Boston Red Sox, comprou o Liverpool FC. Um dos primeiros contratados pelos norte-americanos foi o francês Damien Comolli, que deixou o Tottenham para ser diretor de futebol em Anfield Road logo em 2010. Em Novembro de 2011, Comolli recomendou Michael Edwards, que entrou no Liverpool FC como chefe do departamento de análise e performance. Em Junho de 2013 passou para diretor técnico e de performance e, aproveitando a tendência dos norte-americanos para decomporem o desporto em números – e para apreciarem quem o faz bem – em Agosto de 2015 chegou mesmo a diretor técnico. Dois meses depois, acabou de se compor o ramalhete, quando o clube apostou em Jürgen Klopp para substituir Brendan Rodgers como treinador. A partir daí, a abordagem do Liverpool FC ao mercado passou a ser definida em conjunto pelos dois, em conversas sempre distendidas e informais. E não é que resultou?


Logo no seu primeiro mercado, Edwards gastou 80 milhões de euros, boa parte dos quais em Sadió Mané (41 milhões) e Georgino Wijnaldum (27,5 milhões). Mas vendeu mais do que isso: 85 milhões no total, incluindo os 31 milhões pelos quais vendeu Benteke ao Crystal Palace, os 18 milhões que valeu a saída de Jordan Ibe para o Bournemouth AFC e os 15,5 milhões que recebeu do Stoke City por Joe Allen. Em 2017/18, o Liverpool voltou a lucrar no mercado, gastando 173 milhões (incluindo 84 em van Dijk e 42 em Salah), mas recebendo 194 milhões (entre eles os 145 que o FC Barcelona pagou por Coutinho). Na altura, Edwards foi criticado por ter deixado sair Coutinho, mas essa era a única forma de completar a operação van Dijk. E hoje ninguém se atreverá a dizer-lhe que não teve razão: Coutinho está no Bayern e é avaliado pelo Transfermarkt em 56 milhões de euros, ao passo que van Dijk foi finalista da Bola de Ouro, esteve na base do sucesso do Liverpool FC e mantém o valor de mercado nos 80 milhões.
A época atual foi mais uma em que o Liverpool FC recebeu mais do que gastou. Mesmo se já incluirmos os 8,5 milhões de euros pagos por Minamino ao RB Salzburgo no mercado de Inverno, o balanço é francamente favorável: ao todo, o clube recebeu 41 milhões, incluindo os 22 pagos pelo Southampton FC por Danny Ings. Na verdade, em quatro épocas nas quais transformaram o Liverpool FC numa máquina de ganhar jogos e títulos, Edwards e Klopp só gastaram mais do que receberam em 2018/19. Nesse Verão, o clube só recebeu 41 milhões e investiu 182. Para isso muito contribuíram os 60 milhões pagos ao RB Leipzig por Keita, os 62,5 milhões que custou a contratação de Allison à AS Roma ou os 45 milhões gastos no Mónaco por Fabinho. No entanto, tendo em conta as vitórias na Liga dos Campeões e no Mundial de clubes depois disso, é caso para dizer que o investimento valeu a pena e que Edwards sabe bem o que está a fazer.
Este é o quinto artigo de uma série que já incluiu os perfis de Andrea Berta (aqui), Giuseppe Marotta (aqui), Luís Campos (aqui) e Marcel Brands (aqui).