As duas décadas de carreira de Marcel Brands como diretor desportivo, quase todas vividas na Holanda, contam uma história de coerência na poupança e no investimento das categorias de base. Tanto em Waalwijk, como em Alkmaar ou em Eindhoven, este antigo médio de capacidades modestas apostou forte na formação para ser capaz de superar orçamentos limitados e obter resultados. O sucesso que teve nos três clubes permitiu-lhe chegar, no Verão de 2018, ao Everton. Na margem do Mersey, no entanto, ainda esperam pelo seu toque de Midas. É que, por um lado, o “sistema-Brands”, leva tempo. E, por outro, o facto de o Everton estar proibido de contratar jovens para a sua academia também não ajuda os planos de um homem que sempre gostou mais de poupar do que de gastar. A questão é a de saber se isso é maneira de ganhar em Inglaterra.
“Ele consegue detetar jogadores que dali a pouco tempo se tornam homens-chave”, disse recentemente Louis van Gaal, o treinador que trabalhou com Brands no AZ Alkmaar e que ali foi campeão, com ele, em 2009. “Marcel é um especialista na deteção de talentos entre os 18 e os 22 anos. Trá-los, eles ficam por uns dois ou três anos, aprendem mais uma língua, novas táticas, ganham noções de nutrição e preparam-se para a fase seguinte das suas carreiras”, explica Toon Gebrands, dirigente que com ele trabalhou no Alkmaar e no PSV e que é defensor acérrimo do sistema-Brands. “Tem de se ter paciência. Ele pode levar tempo, mas cria sempre alguma coisa. E quando vai embora deixa trabalho feito”, diz ainda Gebrands, orgulhoso das modificações levadas a cabo pelo antigo diretor desportivo no centro de formação do PSV e que levaram à eclosão de talentos como Depay ou Bergwijn. “Quando cheguei ao PSV, pediram-me duas coisas. Que promovesse mais jogadores da formação e que melhorasse a balança de transferências, entre compras e vendas”, revelou Brands. “E o que pensei foi em investir o dinheiro da Liga dos Campeões na criação de melhores condições para as equipas de formação”, completou. Mas o melhor é não nos adiantarmos, que a história começa muito antes.


Não necessariamente nas ruas de Den Bosch, onde o jovem Marcel vivia para jogar à bola. De manhã, à tarde e à noite. Deu jogador profissional, mas não dos melhores. Jogou no clube local, de onde passou para o RKC Waalwijk, ao NAC Breda e, no topo da carreira, a dois anos no Feyenoord, entre 1988 e 1990. Não foram anos felizes, de qualquer modo – o clube de Roterdão acabou a segunda época dele em 11º lugar e Brands acabou por ser vítima da razia que se seguiu, regressando a Waalwijk sem títulos no palmarés. Quando acabou a carreira, no RKC, Brands nem pensava continuar no futebol. “Estudei e queria seguir alguma coisa na área comercial”, conta. Mas era outra a ideia de Ben Mandemakers, milionário da cidade do sul da Holanda e principal pilar em torno do qual o clube subsiste há décadas. “Convidámo-lo para ser elo de ligação com os patrocinadores. E quando vimos que ele tinha jeito, passámo-lo para as funções de diretor geral do clube”, explica o homem que dá nome ao estádio local. Isso aconteceu em 1998 e o RKC tinha sido antepenúltimo nas duas últimas Ligas.
A primeira decisão de Brands foi mudar de treinador, mas o objetivo era difícil. O dirigente queria Martin Jol, que levara o Roda JC a ganhar a Taça da Holanda um ano antes, mas que depois deixara o clube e era naquela data comentador do Eurosport. Foi a altura de se ver o Brands insistente. “Ele ligou-me para aí umas quatro vezes e eu disse-lhe sempre que não. Então pediu-me que fosse pelo menos ver um jogo. Eu não queria, que Waalwijk é longe, no sul, quase na fronteira com a Bélgica. Mas acabei por ir e o RKC perdeu aí por uns 5-0. A equipa era terrível. Alguma vez eu ia meter-me naquilo?! Mas ainda assim convenceram-me”, contou depois Jol, que se estrearia no início de Novembro de 1998. À data da sua entrada em funções, o RKC era último, com três pontos em dez jornadas. No final, repetiu o 16º lugar das últimas épocas, evitando a despromoção mesmo à justa. “Havia espaço para melhorar, mas não havia dinheiro. Tínhamos de gerar o nosso próprio dinheiro. E acabámos por formar jogadores e vender uns cinco ou seis por uns milhões de florins”, ri-se Martin Jol.


A equipa foi 11ª na Liga de 1999/00 e evoluiu ainda mais para um excelente sétimo lugar em 2000/01, época na qual falhou a presença na Taça UEFA apenas por diferença de golos. E nessa altura Brands vendeu o lateral Cornelisse para o FC Twente, por 2,5 milhões de euros. Após a oitava posição de 2001/02, o diretor desportivo do RKC fez a sua primeira grande transferência internacional, colocando o médio islandês Joey Godjónsson no Betis por 5,6 milhões de euros. Um ano depois, com a equipa outra vez a meio da tabela, foi a vez do lateral Michael Lamey sair para o PSV por 4,3 milhões. E em 2005, Khalid Boulahrouz – que haveria de jogar na seleção e no Sporting – saiu para o Hamburger, da Alemanha, por 1,5 milhão. Já sem Jol, que um ano antes trocara o RKC pelas libras do Tottenham, Brands deixaria o clube nessa altura, numa confortável nona posição, para assinar pelo AZ Alkmaar, que tinha sido terceiro e atingira a meia-final da Taça UEFA com Co Adriaanse (perdeu o acesso à final para o Sporting). Adriaanse veio para Portugal, onde assinou pelo FC Porto, mas o clube apostou forte, com a contratação de Louis van Gaal, que estava fora dos bancos desde a saída do FC Barcelona mas continuava a ser um dos melhores treinadores do Mundo. “Eu sou um tipo muito direto e o Brands é um homem sensível”, conta van Gaal, antevendo ali espaço para que tudo corresse mal. “Mas ao fim de três ou quatro meses éramos muito próximos”, completa.


À chegada a Alkmaar, Brands já fazia uma ideia daquilo em que se ia meter. “Mudou quatro ou cinco olheiros, trazendo outros, que soubessem aquilo que ele procurava nos jogadores”, explica Toon Gebrands, que era diretor-geral do clube. Mas o objetivo era muito complicado: manter-se no meio da hegemonia de Ajax e PSV Eindhoven, que quase monopolizavam os títulos na Holanda. Na primeira época, o AZ foi segundo, a dez pontos do PSV. Marcel Brands vendeu o defesa central Mathijsen ao Hamburger por seis milhões de euros e o médio Landzaat ao Wigan Athletic por 4,4 milhões, mas ainda assim investiu cinco milhões na aquisição de Dembelé ao Willem II. Em resultado disso, o AZ acabou a Liga de 2006/07 em terceiro lugar, mas já apenas a três pontos do campeão, o PSV. Veio então o desastre de 2007/08: 12º lugar, depois de um defeso com algumas contratações de peso, como El Hamdaoui (sete milhões, ex-Willem II), Pellé (seis milhões, ex-Lecce) ou Ari (cinco milhões, ex-Kalmar FF). Perto do final da época, numa viagem até Heerenveen, onde os dois foram ver um jogo da equipa B, e ainda com a possibilidade da descida de divisão em cima da mesa, van Gaal apresentou a demissão a Brands. Este não a aceitou. “’Do que precisamos não é de outro treinador. Do que precisamos é de uma nova equipa, de uma dinâmica diferente no balneário’, disse-me ele”, recorda van Gaal. E a verdade é que, sem aquisições nem vendas sonantes, mas mudando onze nomes no plantel, o AZ acabou por se sagrar campeão, mesmo depois de duas derrotas nas duas primeiras jornadas terem feito temer o pior. Depois disso, porém, foram 28 jornadas seguidas sem perder, permitindo ao AZ ser o primeiro campeão holandês fora dos três grandes desde que o próprio clube ganhara a Liga de 1981.
Finda a época, van Gaal saiu para o Bayern. E, tal como fizera com Martin Jol em Waalwijk, Brands também só ficou por mais um ano. Em Maio de 2010, assinou pelo PSV Eindhoven. Trazia atrás dele o mérito das descobertas de Pelle, Romero, Klavan ou Dembelé, mas o que lhe pediam em Eindhoven era a recuperação da academia, que estava cada vez mais atrás da do Ajax, não só em termos de projeção internacional como de resultados práticos. O PSV tinha sido terceiro na Liga de 2009/10, ganha pelo FC Twente. Brands começou por levar com ele Lens – três milhões e meio para o AZ Alkmaar – e por contratar o central brasileiro Marcelo ao Wisla Cracóvia, por 3,8 milhões, promovendo ainda os jovens Labyad e Rabiu, que depois passariam, sem sucesso, pelo Sporting. Mas a equipa não foi além de novo terceiro lugar em 2010/11. Lá está: o método-Brands leva tempo. Em 2011/12, além de trocar de treinador – Fred Rutten por Phillipe Cocu – o diretor-desportivo apostou nas contratações de Dries Mertens (8,5 milhões para o FC Utrecht), Wijnaldum (cinco milhões para o Feyenoord), e Strootman (4,5 milhões para o FC Utrecht). Além disso, promoveu Memphis Depay da equipa de sub19. Total de custo: 18 milhões de euros. Estes quatro jogadores, no entanto, acabariam por quadruplicar o valor em pouco tempo: Mertens saiu dois anos depois por 9,5 milhões, para o SSC Nápoles; Wijnaldum deixou o clube para assinar pelo Newcastle United por 20 milhões, quatro anos mais tarde; Strootman saiu por 17,5 milhões para a AS Roma, dois anos depois; e Depay demorou três anos a abandonar o Phillips Stadion para jogar no Manchester United, por 34 milhões. Total de receita: 81 milhões de euros. Além disso, em 2015, Depay e Wijnaldum ainda estavam na equipa que, comandada por Cocu, voltou a dar ao PSV o título de campeão da Holanda.


O foco do PSV passara a ser a academia ou a contratação de miúdos noutros clubes. Bergwijn, que no último mercado de Janeiro foi vendido por 30 milhões ao Tottenham, subiu à equipa principal em 2015. De Jong, que no último Verão valeu 12,5 milhões, na saída para o Sevilha FC, tinha chegado em 2014, com 23 anos, do Borussia Mönchengladbach, por 5,5 milhões. O mexicano Lozano, que os holandeses venderam também no último verão ao SSC Nápoles, por 38 milhões de euros, tinha aparecido duas épocas antes, vindo do Pachuca, com 22 anos, por 12,5 milhões. O colombiano Arias, vendido em 2018 ao Atlético Madrid por 11 milhões de euros, custara menos de um milhão quando, aos 21 anos, trocou o Sporting pela Holanda. Locadia, vendido ao Brighton por 17 milhões em Janeiro de 2018, subira da academia cinco anos antes. Propper, que o mesmo Brighton comprara por 13 milhões em 2017, custara 3,5 milhões ao Vitesse (aos 23 anos) em 2015. O central Bruma, transacionado por 11,5 milhões para o Wolfsburgo em 2016, voltara à Holanda depois de uma experiência falhada nas equipas jovens do Chelsea, por apenas 3,5 milhões. O PSV tornara-se uma máquina de fazer dinheiro, ganhando títulos pelo caminho: foi campeão em 2015, 2016 e 2018. Nessa altura, depois de já ter sido dado como certo no Chelsea, Brands aceitou o convite do Everton e mudou-se para Liverpool.


Ali, tal como nas outras paragens da sua carreira, o sucesso tem demorado. A mudança de treinador foi imediata, com Sam Allardyce, que tinha sido oitavo na Premier League, a dar o lugar ao português Marco Silva. Em Inglaterra diz-se que Brands já não teve muito a dizer acerca da contratação do treinador que tinha sido demitido pelo Watford a meio da época anterior, mas é bem possível que tudo não passe de controlo de danos a propósito de uma aposta que não acabou bem: Marco acabou por ser substituído pelo italiano Carlo Ancelotti no decorrer da segunda época, depois de ter repetido a oitava posição final em 2018/19 e de andar pelo meio da tabela em 2019/20. Os dois defesos de Brands em Goodison Park, ainda assim, não foram brilhantes. Gastou 100 milhões de euros no primeiro, com destaque para as aquisições de Richarlison (que Marco Silva levou com ele do Watford, por 39 milhões), Mina e Digne (50 milhões pelos dois para o FC Barcelona). No segundo, abriu mão de mais 120 milhões, grande parte deles investidos em jogadores da sua faixa etária favorita: 30 milhões por Iwobi (ex-Arsenal), 27,5 milhões por Kean (ex-Juventus), 25 milhões por Gbamin (ex-FC Mainz) e outro tanto por André Gomes (que completou a transferência antecipada pelo empréstimo anterior do FC Barcelona). O Everton, no entanto, estava em 12º lugar antes da interrupção da Premier League, antevendo-se que muito dificilmente chegaria a um lugar nas competições europeias.
Para completar o método-Brands, no entanto, falta a academia. E é aí que está o busílis da questão. É que há dois anos o clube está proibido de contratar jogadores para as suas equipas jovens, devido a irregularidades na abordagem a um adolescente do Cardiff City, em 2016, bem antes da chegada de Brands ao clube. O castigo saiu em 2018 e acaba neste Verão. Só depois o holandês que desde miúdo gostava de guardar pelo menos metade das moedas que lhe davam no mealheiro poderá ser avaliado.
Este é o quarto artigo de uma série que já incluiu os perfis de Andrea Berta (aqui), Giuseppe Marotta (aqui) e Luís Campos (aqui).
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