O incómodo de Rúben Amorim e do Sporting face à pressão colocada pela Liga a propósito da realização do jogo que os leões tinham a cumprir na Madeira, com o Nacional, não é caso único entre as consequências da tempestade Filomena no futebol. Em Espanha, o Real Madrid está “pelos arames” com a Liga, depois de esta o ter forçado a voar para Pamplona, onde no sábado defrontou o Osasuna e onde ficou retido, face ao encerramento do aeroporto de Barajas, ao qual era suposto regressar. O problema é que o futebol foi levado ao extremo. E ninguém pensou num plano de contingência capaz de o tirar da carga de trabalhos em que se meteu.
“Não conseguimos aterrar. Foi difícil dentro do avião. Parámos em Porto Santo e tivemos muitas chamadas da dra Helena, da Liga… Que tínhamos de aterrar e ir a jogo. Uma pressão enorme. Parecia que nós é que não queríamos aterrar”, contou Amorim depois da vitória que o líder alcançou no lamaçal da Choupana, num jogo em que lhe valeu uma demonstração de seriedade e qualidade dos seus jogadores mas que, dadas as terríveis condições em que foi disputado, podia bem ter-lhe fugido do controlo. Foi o que aconteceu em Pamplona ao Real Madrid: debaixo de nevão permanente, ainda que não muito intenso, deixando a relva nos limites do praticável, os campeões espanhóis não foram além de um empate a zero frente ao Osasuna, ficando a um ponto do Atlético de Madrid (que viu o jogo com o Athletic adiado, face à camada de neve que caiu na capital), mas com mais três jogos. E vendo reduzida para três pontos a vantagem sobre o FC Barcelona.
O Sporting teve de mudar os planos. A ideia era regressar a Lisboa depois do jogo, que devia ter sido efetuado na quinta-feira, para voltar ao Funchal no domingo, de modo a defrontar hoje o Marítimo, em jogo da Taça de Portugal. Sem margem para grandes adiamentos, pois na sexta-feira os leões têm jogo com o Rio Ave, a contar para a 14ª jornada da Liga, e na terça-feira seguinte defrontam o FC Porto, na meia-final da Taça da Liga. Se os leões acabaram por ter a sorte de poder ficar na Madeira, pois ambos os jogos se disputavam ali, o Real Madrid teve pela frente uma logística mais complicada. Ainda está em Pamplona e, após alguns dias de incerteza, decidiu que sairá diretamente dali para Málaga, onde na quinta-feira defrontará o Athletic Bilbau, na segunda meia-final da Supertaça, que desde a época passada se joga em Espanha no formato de Final Four.
“Jogámos porque nos disseram para jogar. Mas isto não foi um jogo de futebol. As condições eram muito complicadas”, queixou-se no final do jogo de sábado o treinador madridista, o francês Zinedine Zidane. E se Zidane disse que “o jogo devia claramente ter sido adiado”, o guardião Courtouis, que é belga e por isso até está mais habituado ao frio e à neve, foi mais longe: “É lamentável o que a Liga fez. Não somos marionetas, que temos de jogar sempre”. A questão é que são. E têm. Têm de jogar com pandemia e têm de jogar com temporal. Têm de jogar porque os ordenados que cobram fazem deles cúmplices de um sistema que está a ser levado ao extremo e precisa de cumprir todos os compromissos para cobrar receitas. Se já era difícil completar uma época entre início de Agosto e Maio, imaginem o que é fazê-lo suprimindo um mês e meio ao calendário, que foi o que sucedeu na maior parte das Ligas europeias este ano.
O resultado é que tudo fica de tal forma congestionado que, entre Ligas, Taças, Taças da Liga, competições europeias e jogos de seleções, não há margem para adiamentos. Em Espanha, por exemplo, o Atlético de Madrid vai com três jogos em atraso, porque chegámos a meio de Janeiro e ainda não teve datas para os realizar. Um deles, a receção ao Sevilha CF, já está marcado para amanhã – vale a ambos não estarem na edição deste ano da Supertaça a quatro – mas veremos se a neve dá tréguas e se será possível realizá-lo.
No sábado, Kris Boyd, um ex-avançado do Rangers, e Shaka Hislop, antigo guarda-redes do Newcastle FC , riam-se na ESPN quando o moderador do programa em que são comentadores lhes pedia que falassem dos jogos da terceira ronda da Taça de Inglaterra, na qual, por exemplo, o Tottenham iria ainda visitar o Marine FC, do oitavo escalão, a Non League Division One. “A não ser que haja tomba-gigantes, não há nada para dizer destes jogos”, exclamava Boyd, antes de os dois terem concordado que afinal até havia. E muito. Havia para dizer, por exemplo, que mais a mais sem público – as receitas caso lhes calhasse um grande eram muitas vezes a salvação financeira dos clubes de província – o mais correto teria sido suspender todas estas competições paralelas por um ano. Tal não seria, provavelmente, possível, pois também ali há acordos com patrocinadores e cadeias de TV – e a ESPN Plus até transmite a Taça de Inglaterra para os Estados Unidos. Mas é evidente que devíamos ter tido um debate a sério e deliberações acerca do que fazer em caso de emergência. Até porque parece que vem aí nova ameaça de confinamento.