É verdade que ter a nação rubro-negra satisfeita como exército ajuda muito a inflamar, mas nem é por isso que os resultados de Jorge Jesus aos comandos do Flamengo começaram a transcender o caso particular e a ganhar foros de generalização que pode ser perigosa. Jesus joga a final da Libertadores no sábado, frente ao River Plate, e se não for campeão brasileiro no domingo – basta o Palmeiras perder com o Grêmio – pode sê-lo depois, na quinta-feira, ainda com mais três jogos por disputar, desde que ganhe no Maracanã ao Ceará, que é o 15º da tabela. A dobradinha seria uma proeza extraordinária, mas mesmo a mera conquista do Brasileirão já o será, porque Jesus apanhou o Flamengo a oito pontos do topo, em Julho. E é, para já, uma proeza deste grupo de trabalho – querer transformá-la na segunda chegada de Pedro Álvares Cabral à América do Sul pode ser um engano.
Quando Jesus, que ao longo da história já disse várias vezes que os treinadores portugueses são os melhores do Mundo, afirma agora que há muitos treinadores competentes no Brasil e mistura o discurso com referências a Camões, Pessoa e à globalização, está a mostrar que, apesar das dificuldades de expressão refletidas no seu popular português da Reboleira, sabe comunicar como poucos, desde que devidamente orientado. Por um lado, ao falar de inveja, o treinador do Flamengo dá um soco nos rins ao mesmo tempo que afaga o rosto de todos os que têm menorizado o calibre da sua proeza – e nem precisa de lembrar que o Flamengo já tinha um super-orçamento quando estava a oito pontos do topo. Por outro, sobretudo se tencionar continuar a trabalhar no hemisfério Sul, não quer passar a ter toda uma classe de treinadores contra ele e, certamente aconselhado, não deixa a sua tradicional soberba tomar conta do palco neste momento de glória. Tem razão nas duas coisas.
Que o trabalho desenvolvido por Jesus no Ninho do Urubu tem sido suficientemente válido para deixar de lado quaisquer críticas, é o mero bom-senso que recomenda que seja dito. Os adeptos estão rendidos ao futebol espetacular e, sobretudo, aos resultados. Os jogadores estão rendidos, porque percebem que rendem mais agora e que jogar futebol é mais divertido a ganhar com regularidade. E só os adversários encontram ali justificações enviesadas para o sucesso rubro-negro. Não, o campeão não é o orçamento. Mas também não é o estrangeiro. Na Europa, como no Brasil, há treinadores bem preparados e treinadores mal preparados. E há treinadores obsessivos e treinadores que, não deixando de ser bons profissionais, têm a vida cheia de outras coisas, sejam elas a família, os amigos, os hobbies… Ora Jesus, além de bem preparado, é o treinador mais obsessivo que alguma vez conheci – e por isso mesmo nem tem sequer a família com ele no Rio de Janeiro. Vive para trabalhar. Nem férias faz, porque precisa de ver futebol a toda a hora. Não espanta, por isso, que veja coisas que mais ninguém vê, como destacava um dos seus jogadores nesta aventura carioca.
Tal como o sucesso de Mourinho no Chelsea, na primeira década deste século, abriu caminho a vários treinadores portugueses no estrangeiro, o sucesso de Jesus nestes meses de Brasil vai certamente motivar uma corrida ao treinador europeu por parte dos clubes brasileiros mais abertos à novidade. Sim, é verdade que a capacidade média do treinador brasileiro caiu nos últimos anos. O Brasil não tem acompanhado a evolução e isso reflete-se no decréscimo de brasileiros a treinar equipas de classe média-alta na Europa – e é curioso que não se reflita também nos argentinos, que continuam em altas. Mas ir dessa constatação à seguinte, achar de repente que o segredo para se fazer progredir o futebol brasileiro nas dimensões tática, estratégica e, sobretudo, na ciência do treino, passa por uma invasão europeia já é um passo demasiado perigoso. Porque nem todos os treinadores europeus estarão dispostos a esta missão quase asceta que Jesus encetou ao emigrar para o Rio.
O sucesso de Jesus, para já, pertence a Jesus e à equipa que o acompanha. E tipos tão obsessivos com o trabalho como ele não andam por aí aos trambolhões. Os brasileiros depressa vão perceber isso mesmo. Nem que seja às suas próprias custas.